Da arte de ver


Muro alto e enfeitado
- Márcio Lauria -

Foi meu amigo Elias José, grande professor, grande contista e grande poeta recentemente falecido em Guaxupé,  que sintetizou em belo poema: para se escrever algo de geral agrado, tem-se de mostrar ao leitor o que está gratuitamente à sua vista e, no entanto, imperceptível a seus olhos acostumados a apenas ver o que os outros querem  que veja.

Isso quer dizer que a poesia – não necessariamente em verso –  precisa ensinar a quem lê, realidades ou ficções simples como:

Olhar as coisas e descobrir: o avesso, o aviso, a fenda, o fundo, o engenho, o engano.

Olhar os livros e descobrir: o claro, o oculto, o culto, o definível, a dúvida, o decifrável.

Olhar os amigos e descobrir: o afeto, o aflito, o fácil, o afoito, a manha, a mão.

Olhar no espelho e descobrir: o tempo, a têmpera, a marca, a máscara, o mesmo, o outro.

Procurando, são sempre encontráveis temas leves, de geral agrado. Não digo  com o espanto reinaugural do sujeito a quem vão,  de meia em meia hora, tirando um pouco da bandagem que lhe cobre o olho renascido com a doação de córnea. De qualquer modo, a vida é sempre bela, como fez questão de ressaltar Machado de Assis no leito de morte, malgrado todos os seus sofrimentos.

Você pode até se gabar de nem precisar de óculos. Acha que enxerga bem, mas não é esse tipo de visão  que desejo ressaltar. A visão ótima, num sentido mais profundo, há de implicar também a boa audição, o bom faro, o bom tato, o bom paladar e, indispensável, o sexto e crucial sentido – a intuição.

A nossa luminosa Cecília Meireles, que entendia muito das vibrações da alma e do corpo, alerta-nos sobre nossa pretensão de enxergarmos. Diz ela: nós, que nos amamos tanto, que nos admiramos tanto, a quinhentos metros nada somos para os outros. A essa distância, aparentemente pequena, perdemos todos os nossos traços pessoais, os nossos gestos, a nossa individualidade. A quinhentos metros, tornamo-nos mudos, informes, irreconhecíveis  para quem quer que seja. Manchas ambulantes ou estáticas, nada mais.

Quinhentos metros.  Cecília deve ter criado seu belo texto num momento de otimismo, conquanto nos queira advertir das inocuidades, fatuidades e equívocos embutidos no próprio e simples ato de viver.

Quem você distingue a duzentos metros, a cem metros? Quando alguém está a  esta distância, não há como ligar fisionomias, nomes, biografias.

É neste aspecto que investi no tema. Olhamos, forçamos a vista. Tentamos enxergar com clareza; por vezes, mal divisamos.

Entendeu? Se não, paciência. Nem por causa disso o mundo mudará, minimamente.

 

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ANO DE EUCLIDES

Cada vez que recebo material de divulgação de algum evento relacionado com as comemorações do centenário da morte de Euclides da Cunha, sinto um calafrio. E como os tenho recebido!

Parece que São José do Rio Pardo ainda não se convenceu da importância do evento ou mesmo da posição ímpar que o autor de Os sertões  ocupa nos quadros da literatura e da cultura brasileira. Ele é grande, independentemente de nós. Mas será desabonador para a cidade  lembrar de modo pífio este ano especial na focalização de seu ilustre filho adotivo, enquanto outras cidades, até de menores ligações afetivas com o malogrado escritor, já organizam cursos, seminários, mesas-redondas sobre sua vida e sua obra, sua permanência, sua perenidade.

A título de localização de Euclides no cenário das letras e das ciências nacionais, lembrarei alguns juízos de valor emitidos a seu respeito.

  1. Grande inquérito de âmbito nacional solicitou a opinião de escritores, sociólogos, pensadores, jornalistas, economistas, poetas, historiadores, antropólogos, professores universitários sobre qual seria a lista mais expressiva dos grandes livros de nossa literatura. Somente Os sertões  conseguiu a unanimidade dos consultados. Concisa frase que o definiu: “Livro rico em informações científicas, imagens  bem construídas e narrativa eficaz’.

  2. No Pequeno guia da literatura universal, de Luiz Carlos Lisboa ( Rio, Forense-Universitária, 1986), o principal livro de Euclides é situado na divisão ensaio e merece o seguinte comentário: “Uma composição feliz e grandiosa, de trabalho de historiador, etnógrafo, sociólogo e artista. A terra, o meio social, a religião, tendo como pano de fundo a campanha de Canudos. Os sertões é a grande epopéia da literatura brasileira”.

  3. Frederic Amory, professor na Universidade de Berkeley, Califórnia, assim se manifesta: “Eu considero este livro não apenas  como o supremo trabalho histórico e literário da literatura brasileira mas também  como o mais importante volume individual  da história das Américas. É uma pena que  tão poucos brasileiros compreendam sua importância fundamental como uma interpretação da vida do povo numa dada época da história das  Américas”.

  4. Alfredo Bosi, professor de Literatura Brasileira da Universidade de São Paulo, comenta  que “a modernidade de Os sertões funda-se principalmente no sentimento de contradição  que sai da leitura de todas e de cada uma das suas páginas. Não se trata apenas das contradições objetivamente apontadas por Euclides da Cunha ao descrever o relevo e o clima da região de Canudos, ao narrar a história racial e cultural do sertanejo, ao interpretar a luta entre este e o ‘civilizado’ do litoral; trata-se do próprio foco subjetivo que ditou a obra, o ponto de vista do autor no qual se confrontou, contraditória e dramaticamente, o fatalismo darwiniano de uma ciência que se quer impessoal e ética da denúncia que trai a indignação, a ‘santa ira’ contra o massacre dos inocentes”.

E assim é. Não se pode pensar superficialmente em nada que envolva Euclides da Cunha, sua vida, sua obra e seu fim trágico.

Não haveremos de ater-nos à concentração, importante, é verdade, das atividades da Semana Euclidiana. A cidade deve e pode organizar roteiros mais substanciosos de divulgação e estudos que se iniciem desde logo, ultrapassem a efemeridade da Semana e se estendam até dezembro. Não nos faltam nem elementos humanos, quando corretamente estimulados, nem  instituições idôneas,  nem locais, nem apoios que deem a este Ano de Euclides   a seriedade e o brilho compatíveis com a importância  de São José do Rio Pardo na geografia e na história euclidiana.

Não se pode perder de vista que o euclidianismo não é a expressão algo fanática de alguns saudosistas, mas uma forma das mais eficazes de motivar as novas gerações para o conhecimento do Brasil e seus problemas. Não  gratuitamente a obra euclidiana, como um todo, é de inclusão obrigatória no rol dos livros que  tratam da correta interpretação de nosso país.

18 de maio, aniversário da inauguração da ponte metálica, precisa ser um marco motivador dessas atividades próprias  da justa rememoração de como a cidade e Euclides mutuamente se engrandecem nesta quase secular tradição de homenagem a um ilustre engenheiro e escritor que aqui viveu momentos dos mais felizes de sua abreviada existência.

Penso, especificamente, na substancial contribuição que, além da Casa de Cultura Euclides da Cunha,  podem dar a tantos tipos de eventos nossas escolas, em especial as  superiores, em cujos quadros despontam  nomes da melhor capacitação universitária.

Prometo não voltar ao assunto.

 

 

04/04/2009
(emelauria@uol.com.br)

 

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