AMIGOS QUE VÃO

 
Fim de tarde

 

Um dia destes, depois de parada e reflexão em pontos obrigatórios de nosso velho cemitério, deu-me vontade de caminhar por outros lados, sem pensar onde me deter mais.

O que muito me impressionou foi ver tanta inscrição nova em túmulos velhos, prova evidente de quanta gente  tem morrido nos últimos tempos, como se não fosse fato sabido que minha geração, em sua grande maioria, já se foi desta para melhor. Parentes, vizinhos, colegas de escolas, de tiro de guerra, de vida política, de jornais, ex-alunos ou apenas conhecidos de vista estão lá, espera-se que na paz de Deus.

Fronteiriço ao jazigo de minha família, está, recém-aberto, um túmulo, ainda sem a indicação do  seu mais novo ocupante, o bom amigo Rubens Lobato Pinheiro, contemporâneo meu. Fiquei espantado quando, isso já faz alguns anos, ele me comunicou, com ar brincalhão, que seríamos futuros vizinhos, com muito tempo para longos e silenciosos papos. Não entendi de pronto a anunciada vizinhança, menos ainda os silenciosos papos, até vir sua explicação que nossas possíveis moradas finais ficavam frente a frente. Não tenho nenhum plano de começar logo a desfrutar sua agradável companhia.

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Segunda-feira, velamos alguém de idade bem superior à média: Roque Cônsolo, quase 95 anos, que encerrou seu ciclo vital simplesmente por decurso de tempo. De saúde invejável, apreciador de bons vinhos e acostumado a comidas fortes, aí incluídas pímentas, gozou bem sua longa aposentadoria de educador, depois de trabalhos em São Paulo, Campinas, Casa Branca e São José, notadamente no  Instituto de Educação Euclides da Cunha.

Por muitos anos foi diretor de nossa velha escola, não sem antes exercer lá mesmo as funções de orientador educacional e de vice-diretor na gestão do Dr. Abdiel Cavalcânti Braga.

Conversei  com Célia, a viúva, minha aluna em outras eras, assim como o foram as filhas Márcia e Beatriz e o filho Fernando. Estavam todos serenos, com a plena certeza de que tinham dado a  Roque o mais carinhoso e tranquilo final de vida. Sabe-se que muitos filhos, mesmo dos mais bem intencionados, não têm podido dar a velhos pais e mães  aquela assistência que exige o que a maioria hoje não dispõe: tempo para se dedicar a outrem. Sinal de nossa época de tantos compromissos e correrias, de tantas limitações.

Meu relacionamento com Roque Cônsolo sempre foi amistoso e respeitoso: eu admirava o seu modo peculiar de tratar as pessoas, fossem professores, funcionários, alunos, pais de alunos. Estava sempre atento à formação de bons cidadãos.

De vez  em quando, ele se referia a  pontos agradáveis de sua vida de jovem: o saudoso curso do CPOR, que o fez oficial da reserva; bom pistonista, ganhou dinheiro como músico na agitada vida noturna da São Paulo dos anos quarenta e cinquenta.

 Nunca deixou de ser enérgico, mas nem por isso tomava atitudes que envolvessem autoritarismo. Deu-me diversas provas de amizade e reconhecimento de minha conduta profissional. Enfim, era um educador consciente, que valorizava os esforços alheios e estimulava o bom andamento da escola como um todo.  Marcou, e muito bem, a sua longa e produtiva atuação educacional.

Roque Cônsolo merece descansar em paz.

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A maior divulgação de minha provecta idade –  no lombo oitenta e cinco aninhos bem vividos  –  vem provocando uma sutil mudança de tratamento de algumas pessoas para comigo. Estão mais gentis, cedem-me o passo, param os veículos à minha passagem, fazem até menção de me ajudarem a atravessar a rua. Embora sabendo que se trata de gentis gestos de amizade, bem que eu preferiria ser considerado menos velho, menos dependente, menos bem situado na fila dos facilmente convocáveis para a outra e insondável vida que nos aguarda a todos.

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Passam a disputar vez  de leitura  alguns livros que ganhei de aniversário. Entre eles: Machado, romance de Silviano Santiago, sobre a velhice de Machado de Assis; Fernando Pessoa – uma quase autobiografia, de José Paulo Cavalcanti Filho; Documentos históricos do Brasil, de Mary del Priore; As grandes ideias de todos os tempos, da Globo Livros, com o livro da economia e o livro da filosofia. Também o DVD Minha amada imortal, filme a respeito de um amor secreto de Beethoven, entra na fila. Terão seu destino assegurado as quase vinte garrafas de bons vinhos italianos, espanhóis, portugueses, chilenos e argentinos com que fui brindado. Agradeço a  tantos amigos generosos e de bom-gosto. Não os decepcionarei, se Deus me der bons olhos e bom estômago. O que não falta é tempo e vontade.

 

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E o Brasil, hem?  Sairemos deste gigantesco atoleiro? Para arremate de males, no Rio de Janeiro até carro alegórico ou  atropela foliões ou se desmancha por excesso de peso.

E o  surpreendente Trump, hem? E o muro entre Estados Unidos e México  sairá mesmo ou ficará na fanfarronice do estranho homem que detém o poder de mudar a face do nosso pobre mundinho, cada vez mais uma aldeia global?

 

 

04/03/2017
emelauria@uol.com.br

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