UM LIVRO CENTENÁRIO E ATUAL

Embora pronto em fins de 1906, Contrastes e Confrontos é lançado em 1907, numa descuidada edição impressa em Portugal (Lello & Irmão), longe das vistas e das inevitáveis emendas de seu autor. Será o único livro de Euclides da Cunha que ostente um prefácio. Escreveu-o o crítico José Pereira de Sampaio (por pseudônimo Bruno), que o apresentou ao público lusitano, para quem o autor era praticamente desconhecido.

É difícil perceber-se alguma unidade de conteúdo neste livro, constituído de artigos publicados entre 1894 e 1905, mas notadamente com material editado em 1904.

Se a busca dessa unidade se der a partir do índice das matérias que o constituem, fica-se com a impressão de total falta de metodologia, porque seus primeiros assuntos são “Heróis e Bandidos”, “O Marechal de Ferro”, “O Kaiser”, “A Arcádia da Alemanha”, “A Vida das Estátuas”, “Anchieta”... Nenhum nexo entre esses temas, nenhuma justificativa dessa seqüência.

Foi o rio-pardense  Olímpio de Souza Andrade (autor da notável História e Interpretação de “Os Sertões”) quem deitou luzes sobre a questão, num minucioso estudo que abre a edição Cultrix/MEC de Contrastes e Confrontos,  de 1975. Olímpio, além de determinar com exatidão as datas e os locais da primeira publicação de cada artigo, fez a redistribuição da matéria constante do livro, de modo a evidenciar a unidade que lhe é própria. Percebe-se, então, que existem nele cinco grandes temas onde cabem todos os artigos numa coerência orgânica que restabelece a vontade de Euclides, quem sabe temeroso de vê-los ostensivamente lado a lado, ainda no calor dos acontecimentos históricos a que alguns deles se referem.

Num rascunho de carta ao escritor argentino Agustín de Vedia, sem data, mas seguramente de 1908, Euclides se queixa dos críticos audazes que afirmam serem Os Sertões seu único livro. E interroga-se: “Será verdade? Custa-me, contudo, admitir  que tenha chegado com ele  a um ponto culminante, ficando todo o resto da existência para descer desta altura.”  Leio isso no “Epistolário” da Obra Completa, volume II, páginas 695/6 da edição Aguilar de 1966.

Na verdade, o resto de sua existência foi muito curto – um ano, pouco mais ou menos. Se não tivesse morrido assassinado a 15 de agosto de 1909, aos quarenta e três anos, com certeza teria atingido mais vezes as culminâncias de seu maior livro. Provas disso são alguns textos de Contrastes e Confrontos. Poderia ainda ter realizado outros projetos, como o de completar Um Paraíso Perdido, cujas partes iniciais foram publicadas em À margem da História, livro póstumo de 1909, e de tratar com rigor um tema que o fascinava – a Revolta da Armada, em 1894.

O que caracteriza todos os artigos de Contrastes e Confrontos é o seu cunho jornalístico e a conseqüente preocupação de se fazer entender por um público mais abrangente e quase nunca informado das questões levantadas por Euclides. Daí algumas explicações mais pormenorizadas, daí a linguagem mais desataviada e o vocabulário mais acessível, embora ainda com o uso de muitos termos que em qualquer tempo têm levado o leitor mais cuidadoso a recorrer aos dicionários. Não pode também deixar  de ser evidenciada a necessidade de se explicarem cada vez mais os acontecimentos e personagens históricos referidos no livro, quase sempre desconhecidos pelo comum dos leitores.

Experiência recentemente efetuada na série de palestras que proferi na Biblioteca Municipal de São José do Rio Pardo dá conta da necessidade de ser fazerem leituras comentadas dos textos do livro agora centenário: sem uma cuidadosa elucidação  do vocabulário euclidiano e das referências a pessoas e a situações nele contidas, o leitor atual, ainda que bem intencionado e culturalmente bem apetrechado, por si mesmo não chegará à plena compreensão do sentido de cada artigo.

Exemplo do necessário esclarecimento histórico é o belo texto “Temores Vãos”, em que Euclides deve ter achado dispensável, por relativamente contemporânea, referir-se diretamente à guerra hispano-americana (1898), sem cujo conhecimento perde vigor sua argumentação contra os que temiam o nascente imperialismo norte-americano.

Uma vez, porém, efetuado este trabalho de elucidação dos textos, foi confortador o interesse  dos assistentes, então convencidos da profundidade da mensagem euclidiana e de sua atualidade por vezes perturbadora nas questões sobre a preservação do meio ambiente, do desmatamento irracional, no baixo aproveitamento dos rios como “estradas” já prontas. Percebe-se que Euclides atingiu neles uma das mais altas funções da Literatura, a de sintonizar os leitores de qualquer época com as revelações e denúncias que o autor desejou fazer. Ler este seu livro leva forçosamente o leitor consciente a se indagar sobre o que se tem feito no Brasil em favor das riquezas naturais, da fertilidade do solo, da força civilizadora das ferrovias, das interligações regionais através das bacias hidrográficas.

Penso que dois termos, de uso posterior ao surgimento dos livros de Euclides, fazem neles uma notável falta: em Os Sertões, genocídio; em Contrastes e Confrontos, ecologia.

Genocídio, do latim genus (família, raça) e caedere (matar, cortar), é termo cunhado inicialmente em inglês (genocide) por Raphael Lemkin, em 1944, para designar a destruição em massa de um grupo étnico, os judeus de modo específico. Foi também  genocídio o que aconteceu em Canudos. A frase final da “Nota Preliminar” de Os Sertões provavelmente não seria “Canudos foi um crime. Denunciemo-lo”.

Ecologia, do grego oikos (casa) e logia (estudo). Por extensão passou a significar, a partir da segunda metade do século XX com o termo francês écologie, o estudo da nossa casa, o planeta Terra, onde tudo está relacionado com tudo, devendo ser levado muito a sério o papel dos elementos constitutivos do equilíbrio vital, hoje tão claramente comprometido pelo homem, que Euclides chama de “agente geológico notável”.

Essa preocupação ecológica, já presente em Os Sertões, assume em Contrastes e Confrontos feições muito claras, principalmente em “Fazedores de Desertos”, artigo datado de 21 de outubro de 1901, quando com certeza seu principal livro já estava nos retoques finais.

Surpreendentemente, esses fazedores de desertos não foram flagrados na Amazônia ou no Nordeste. Euclides vem localizá-los no interior de São Paulo e denuncia um fato que nos pareceria impensável: há já mais de cem anos tivera  a percepção de mudanças climáticas provocadas pelas queimadas, uma triste herança dos indígenas. Hoje, com a maciça queima de imensos canaviais, o nível de poluição e de secura do ar vem atingindo níveis insuportáveis.

E vai por aí em fora a análise fria e criteriosa de Euclides sobre o desbaratamento das riquezas do solo paulista, até chegar a um triste epílogo -- o homem não mereceria estar entre as grandezas com que a natureza o dotou: não corrige essas grandezas nem as domina nobremente, nem as encadeia  num esforço consciente e sério. Extingue-as.

O livro encerra muitas outras páginas de superior elaboração, que analisam, corrigem, alertam, advertem, sendo por isso provas de que grande escritor não é apenas o intérprete de seu tempo, mas aquele que tantas vezes se coloca contra o seu tempo, vendo com clareza o futuro que ninguém consegue ver.                                   

Não é sem propósito, assim, a bela frase de Martim Francisco (citada por Olímpio de Souza Andrade), que via em Euclides da Cunha um letrado radical: quando escreve, obriga o mundo a pensar...

 

(Condensação de estudo já publicado no Suplemento Euclidiano de 2007 deste jornal, destinado a público muito específico.)

 

03/11/2007
(emelauria@uol.com.br)

 

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