Poderia ter sido

  
Do Rio Pardo FC

 

Não há quem não tenha tido, ao longo da vida, encruzilhadas de difícil escolha, ou tomado decisões que acabaram mudando os rumos de  toda a existência.

Se, por exemplo,  você tivesse insistido em embarcar naquele vôo para Brasília, teria morrido com a queda do avião que não poupou nenhum passageiro. Se você outra, num momento de indecisão, ao invés de virar para a direita, tivesse tomado a rua da esquerda, não teria dado de encontro com aquele vistoso colega de faculdade e muito menos casado com ele, seis meses depois.  E você outro não teria sido atropelado na avenida, fraturado perna e braço,  se simplesmente tivesse adiado a travessia por meio minuto.

É como resume Marques Rabelo, um bom e relegado autor brasileiro do meio do século passado: “A vida é um tecido de equívocos”. De equívocos, de mal-entendidos, de bem-entendidos, de leituras estranhas do que era evidente, de aceitar um convite inusual, de não ter percebido que o cavalo arreado da sorte passara por você,  relinchando até ficar rouco, e você...nada!

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Um poeta inglês, de nome ostensivamente italiano – Dante Gabriel Rossetti --, garante que não existem em nenhuma língua do mundo palavras mais loucas ( saddest words) do que poderia ter sido (it might have been).

Não há quem não faça hipotéticas retificações no seu destino vivido. Mesmo quando não haja motivos maiores de se querer ter dado outra direção ao que se fez da vida, ou ao que a vida fez de cada um, é da natureza humana imaginar o que poderia ter sido se, nas encruzilhadas todas, tivesse sido escolhido o outro caminho.

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Meu pai, que viveu entre 1901 e 1989, era homem de poucas confissões e de muito menos lamentações. Das raras mágoas que ele guardava de sua longa vida nenhuma me parecia mais profunda do que a comprovação de jamais ter podido desenvolver suas potencialidades intelectuais, tão cobrado ele foi, desde muito cedo, para trabalhar no sustento da família, levada a extremas dificuldades por causa do amor de meu avô à orelha da sota e à tentação do pano-verde, isto é, aos jogos de azar.  Como ele resumia, seu pai fora rico três vezes e pobre quatro...

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Ilustre jornalista e acadêmico rio-pardense (1901-1993),  Honório de Sylos tomou-me por seu confidente, apesar da grande diferença de idade entre nós.

Quem sabe desiludido com o pouco apreço que seu filho  boêmio dava às coisas que ele muito apreciava, queria ver em mim uma espécie de continuador seu. Chegou até a traçar uns mirabolantes planos que envolviam minha candidatura para a Academia Paulista de Letras – isso sem se pensar em voos mais ousados.

Nunca aderi a seus projetos, que me exigiriam viajar sempre a São Paulo,  além de travar obsequioso conhecimento com meus potenciais eleitores. Ele estranhou minha falta de entusiasmo com o projeto dele e acabou arquivando a ideia. Não se pode, mesmo, sonhar o sonho alheio.

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Numa noite de longínqua Semana Euclidiana, nós dois nos pusemos a andar pelas desertas ruas da cidade. Frente a uma velha casa, ele se lembrava de quem havia morado nela; mais adiante, a casa onde residira sua primeira namorada; pouco acima, o  sobradão que pertencera a familiares seus.

Mas o assunto principal foi desaguar exatamente no tal  poderia ter sido. É que ele, jornalista de prestígio no Correio Paulistano, diário ligado ao Partido Republicano Paulista, havia sido colaborador eficiente de Júlio Prestes de Albuquerque, presidente do estado de S. Paulo e vitorioso candidato à presidência da República, em 1930.

No silêncio propício daquela noite ele foi verbalizando, quem sabe pela primeira vez em tantos anos, os ambiciosos sonhos alimentados depois de uma vitória eleitoral obtida nos estritos padrões da chamada República Velha: eleições fraudulentas, mas eleitos capazes. Uma vez empossado e ocupando o Palácio do Catete, Júlio Prestes certamente o convidaria para importante cargo, talvez o de chefe de gabinete. Pronto, estavam-lhe abertas as portas do prestígio social e político fora da província, em âmbito nacional. A menos que...

A menos que os derrotados na eleição a bico de pena (votavam defuntos, vivos votavam mais de uma vez, votos de adversários eram anulados) partissem para a contestação armada.  E foi o que aconteceu: a revolução estalou pelo País todo, o presidente em final de mandato (Washington Luís Pereira de Sousa) foi deposto,  Júlio Prestes  curtiu seu exílio europeu e Getúlio Vargas assumiu a presidência, instalando um governo provisório que acabou durando quinze anos.

Pronto, lá se foram os belos devaneios de nosso ilustre conterrâneo Honório de Sylos. Não é que a vida o tenha maltratado insuportavelmente: ele fez boa carreira de advogado, continuou a militar na imprensa, foi diretor do Departamento Estadual de Informações, conseguiu a desapropriação do imóvel em que Euclides da Cunha residira aqui em São José, instalou nele a Casa Euclidiana... Escreveu o opúsculo “Glicério em São José do Rio Pardo”, em que relata o Episódio Republicano Rio-Pardense, de 11 de agosto de 1889, dando-lhe uma grandeza patriótica hoje posta em sérias dúvidas. Tudo isso, teria pensado ele, poderia valer-lhe votos para a Assembleia Legislativa de São Paulo. Engano ledo e cego, pois ficou longe do quociente exigido, brigou com nossa cidade (onde tivera votação inexpressiva) e por muitos anos nem apareceu por estes lados.

O raro título de Cidadão Emérito, que por artes minhas a Câmara Municipal lhe outorgou, adoçou-lhe  o humor e o reconciliou com a terra natal.

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Na festa comemorativa da posse de um amigo seu na Academia Paulista, sentiu nova e vexatória experiência do poderia ter sido, no caso do bem poderia não ter sido. No ambiente seleto e cordial de um buffet dos mais conceituados, de repente um vozerio, empurrões, barulho de coisas quebradas: seu filho boêmio lhe aprontara mais uma das suas. Tentou subtrair  um litro de whisky e foi flagrado pela calejada segurança daquele local sofisticado, pronta a  prender o etílico rapaz, se o paciencioso pai não tivesse intervindo imediatamente e se prontificado a cobrir todos os prejuízos. Foi talvez o seu último aparecimento em público. Envergonhado com o vexame causado pelo filho, fechou-se em doloroso silêncio e tempos depois, morreu.

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Eu mesmo senti a força da encruzilhada do destino quando não me empenhei como poderia em atender o convite que me fizera o Prof. Rocha Lima, do Colégio Pedro II, para que fosse, em seu lugar,  dar aulas de Português numa escola brasileira instalada pelo nosso  Ministério das Relações Exteriores em Assunção, capital do Paraguai.

Não fui, direcionei minhas ações no sentido de voltar em definitivo para São José e aqui constituir família. Nunca me arrependi da escolha, mas não poucas vezes me bateu a curiosidade de imaginar como poderia ter sido se eu tivesse ido parar lá.

 

03/10/2015
emelauria@uol.com.br

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