Euclides e Rio Pardo

Muito honrosa para mim a participação neste Seminário Internacional comemorativo do centenário de morte de Euclides. (*)

Venho de São José do Rio Pardo, cidade paulista que muitas vezes esteve isolada na manutenção das atenções de estudiosos sobre a importância e atualidade da obra euclidiana e dos grandes problemas nela suscitados.

O feliz consórcio de cidades, de escolas, de academias, de órgãos de comunicação de massa, de institutos de estudos na valorização do momento histórico ora vivido, reitera real preocupação com Os sertões e com outros livros injustamente ditos menores no universo euclidiano. A própria instituição, pela Academia Brasileira de Letras, do Ano de Euclides  é certeza de que suas mensagens atingiram, na elaboração artística, aquela culminância de perenidade,  que coloca certos textos além e acima de impressões meramente  pessoais ou de mutáveis gostos de uma época.

As definitivas obras literárias (e não há como não classificar assim Os sertões) não admitem  em seu exame intrínseco a idéia de progresso conceitual  posterior ou mesmo de novos dados. São ambos, progresso e acumulação, incompatíveis com a própria natureza do fato literário.

Incomum estado de ânimo, de forte natureza emocional, ganhou forma em minha cidade a 15 de agosto de 1912, quando pequeno grupo de amigos do engenheiro-escritor se dirigiu em romaria à cabana humilde,  de sarrafos e zinco, à beira do rio Pardo, e lá relembrou saudoso a figura de Euclides, tirado violentamente à vida três anos antes.

Aqueles euclidianos precursores anteciparam-se  a outros amigos de Euclides que, no Rio de Janeiro, a 15 de agosto de 1913, fariam, incorporados,  sua primeira visita ao túmulo 3.026, quadra 41, do cemitério de São João Batista, onde então repousava o corpo do malogrado cantagalense.

Não ficou apenas na repetição da romaria de todo 15 de agosto (agora se aproximando de um século de ininterrupta realização) o devotamento de São José do Rio Pardo a Euclides.

Em 1918, recuperada a cabaninha, erigiu-se, nas proximidades dela e da ponte, um monumento. Na peanha de granito rosa, o medalhão de bronze com a efígie de Euclides e o verso autobiográfico: Misto de celta, de tapuia e grego...

Em  1925, compunha-se o Grêmio Euclides da Cunha, a quem coube a iniciativa de fazer instituir o Dia de Euclides (15 de agosto, declarado feriado municipal).

Em 1928, construía-se redoma de vidro e cimento, para proteger das intempéries a cabana-escritório, tempos depois incorporada ao Patrimônio Histórico e Artístico Nacional.

Em 1936, a Semana Euclidiana, ampliação natural do Dia de Euclides. Iniciativa de Oswaldo Galotti.

Em 1939, a Maratona Intelectual Euclidiana, idealizada por Hersílio Ângelo.

Em 1946, a Casa de Cultura, por mérito de Honório de Sylos, que a fez instalar em imóvel onde residira Euclides com sua família.

 


HONÓRIO DE SYLOS, criador da Casa Euclidiana, 1946.

 

Em 1962, o Ciclo de Estudos Euclidianos, de cuja criação participei ao lado de Dermal de Camargo Monfré.

Em 1970, a  criação da Cadeira de Estudos Euclidianos, na Faculdade de Filosofia, sob minha regência..

Em 1982, com a generosa anuência da família, liderada por Joel Bicalho Tostes, a construção do Mausoléu e o solene traslado dos despojos de Euclides e do filho Quidinho para “o ermo do rio Pardo”, como ele mesmo definiu.

 


JOEL BICALHO TOSTES, em nome da família de Euclides da Cunha,
autorizou o traslado dos despojos do escritor e de seu filho para São José do Rio Pardo em 1982

 

Em 2002, a instituição e entrega do Prêmio do Centenário de Os sertões, julgado por Comissão que tive a honra de presidir, vencido por brilhante professor  da Universidade Federal do Rio de Janeiro...

Neste 2009, extensa programação coordenada pela Casa de Cultura, com apoio dos poderes públicos, de entidades particulares, das escolas de todos os graus, da imprensa falada, escrita e televisada, tudo em função do centenário da morte de Euclides. Desde 20 de janeiro (data de seu natalício), até 2 de dezembro (em comemoração ao lançamento de  seu grande livro), uma agenda de atividades das mais variadas vem dando ampla divulgação a estudos sobre sua vida, sua obra e a atualidade de sua mensagem. Ponto culminante: a Semana Euclidiana, tradicionalmente de  9 a 15 de agosto, mas neste ano transferida para o início de outubro.

Já se vê, por este breve relato histórico,  incansável e perene a dedicação rio-pardense ao ilustre hóspede que se  tornou filho adotivo.

Providencial que, logo após seu retorno de Canudos, aonde fora como correspondente de guerra do jornal  O Estado de S. Paulo,  tivesse Euclides podido lançar âncora em porto calmo para estudar, meditar e escrever, com os vagares que até então desconhecia. A reconstrução de uma ponte metálica no rio Pardo, que as águas haviam seriamente abalado alguns dias depois de inaugurada, foi-lhe ensejo de residir em São José do Rio Pardo, entre 1898 e 1901. Na cidade e vizinhanças não lhe faltaram amigos dispostos a ouvi-lo, animá-lo, aplaudi-lo.

Dentre todos, avulta Francisco Escobar, mineiro de Camanducaia, intendente de nossa cidade, jurista provisionado, poliglota, executante de piano e flauta. O doutíssimo  Escobar, no dizer exigente de Rui Barbosa. A Escobar coube a missão de incentivar o irrequieto Euclides a prosseguir na elaboração de  Os sertões, malgrado as canseiras da reconstrução da ponte. Com ele ou através dele, Euclides obteve preciosos informes, incluindo desde a possibilidade de consultar obras raras (como a Flora brasiliensis, de Martius, doada  a Casa Branca por Pedro II), até a severa observância de escrever de acordo com as leis invioláveis da língua...

 

 


FRANCISCO DE ESCOBAR, amigo dileto de Euclides da Cunha, morreu em 1925

 

De apreciável informação científica, era contudo Euclides  carente de maior bagagem literária –  circunstância justificável num engenheiro de formação militar. Foi apenas em São José do Rio Pardo, em torno dos trinta e cinco anos de idade, que se embrenhou pelos clássicos portugueses, revelando preferência por Alexandre Herculano e Camilo Castelo Branco. Do grande Antônio Vieira, assimilou Euclides técnicas de composição presentes em “O Estatuário” e visíveis na confecção  da figura material de “Judas-Ahsverus”.

Então residente em Casa Branca, relata o contista Valdomiro Silveira, autor de Os caboclos:  “Pediu-me que lhe fornecesse alguns livros desses autores que todos nós conhecemos e amamos. E no primeiro domingo, porque nos encontrávamos todos os domingos, levei-lhe O monge de Cister. Cerca de quinze dias depois, reencontramo-nos na ponte metálica sobre o rio Pardo. Euclides de longe surpreendeu-me com estas palavras: Valdomiro, o Herculano é pesado. Contudo, aproximando-se mais um pouco, atenuou o rigor dessas palavras iniciais dizendo – mas tem o peso do ouro maciço...

À margem esquerda do rio Pardo, a cerca de cem metros acima do local  onde emborcara a primitiva ponte, ocupou Euclides uma barraca de  sarrafos  e folhas de zinco, sombreada por paineira de forma estranha, como que a proteger com espalhada e retorcida ramaria a rude construção. Um verso de Shakespeare escrito a zarcão à entrada da cabana expressava por certo a perplexidade de Euclides ante o desabamento da ponte, a maior obra urbana até então executada pelo Departamento de Obras Públicas do Estado de São Paulo. Queixava-se o verso: What shall do a man but  to merry...  (Que poderá fazer um homem senão rir...)  A cabana está firme, envolta por redoma de cimento e vidro, resistindo até a enchente decamilenar de 19 de janeiro de 1977, quando as águas em fúria alcançaram o parapeito da veneranda ponte euclidiana. A paineira retorcida não. Caíra muitos anos antes, sucumbindo durante a noite em meio a um temporal. Sucumbiu com extremos de cuidados, como que desobedecendo à lei da gravidade, sem atingir a casinha histórica.

Chegado a São José do Rio Pardo, mal iniciara Euclides o  livro por ele mesmo classificado como vingador. É de crer-se que trouxesse prontas, mas à espera de suas revisões sempre substanciais, apenas as páginas sobre “A Terra” e algumas sobre  “O Homem”, uma sexta parte do livro, se tanto. E mesmo trechos constantes do “Excerto de um livro inédito” ( O Estado de S. Paulo, de 19 de janeiro de 1898) sofreram radicais transformações redacionais. É o verificado com o antológico  estudo sobre o sertanejo, como se comprova na comparação do escritor rio-pardense Olímpio de Sousa Andrade, em sua brilhante História e interpretação de “Os Sertões”.

 


OLÍMPIO DE SOUZA ANDRADE, rio-pardense de nascimento,
autor de "História e Interpretação de Os Sertões", faleceu em 1980.

 

Outra página de superior elaboração artística, poliu-a Euclides de modo bem curioso. Segundo José Honório de Sylos, funcionário municipal e euclidiano histórico, o escritor  pouco sabia a respeito de  estouros de boiadas (nunca assistira a um deles) e quis ouvir o relato de  um boiadeiro de verdade. Alguém conseguiu trazer da cidade mineira de Muzambinho o falante Jerônimo Picuí, que fez a pintura caipiresca do evento. Viva e precisa foi a dramática descrição oral: sua boiada, a   tremer  a terra com o estrépito de seus passos pesados, atroando o ar com o estrépito das guampas, até fedia a chifre queimado...  

Os sertões, “livro bárbaro da minha mocidade, tão estranho à maneira  tranquila   como hoje eu encaro a vida, que a mim mesmo custa entendê-lo”... É o que assevera Euclides a Agustín de Vedia, em  carta de 1908. Bem outra sua opinião  quando escreve ao pai, a bordo do navio que o conduziria à Amazônia, em  fins de 1903. O livro era nada menos  que  “seu grande neto”... A constante pergunta que preocupava Euclides, ele a fez ao mesmo Vedia: Seria ele autor de um livro só? – A rigor, sim. Reconheçam-se páginas brilhantes fora dele, como “Judas-Ahsverus”. Como “Temores vãos”, como “Fazedores de desertos”, como “Estrelas indecifráveis”,  mas é de seu primogênito que lhe advém toda a glória, ou ao menos toda a fama literária. Como resumiria Roquette Pinto, “Euclides da Cunha mostrou como se pode tomar base lógica científica para supremas construções literárias”.

Livro e ponte concluíram-se a um tempo. Esta estará sujeita à inevitável ação dos elementos e da incúria dos homens. Aquele, por ser atemporal, estará infenso aos modismos e gostos de certas épocas.  Tratando de um dos mais constantes assuntos das artes – o sofrimento humano, o livro sempre interessará a todos os povos e a todas as épocas. O leitor consciente nele perceberá sempre a presença da função sintonizadora das excelentes obras literárias, que lhes  dá a inesgotável capacidade de despertar a solidariedade humana, ao longo de milênios até. Daí a imortalidade da Odisseia, da Divina Comédia, de Dom Quixote, do teatro shakespeariano. E de Os sertões, sem a menor dúvida.

Ainda quando a obra euclidiana não mais refletir as nossas tristes contingências contemporâneas, o euclidianismo (aqui magnificamente dando provas de vitalidade ) nada perderá quanto a razões de ser, dado o seu incomum exemplo de lealdade, mormente num país de pouca tradição e de curtíssima memória.

Nascido em São José do Rio Pardo, com a passionalidade resumida na frase admirável de Alberto Rangel – POR PROTESTO E ADORAÇÃO –, e hoje vivendo com pujança em tantos pontos da imensa Pátria,  este mesmo euclidianismo terá como viga-mestra de sustentação  a excelência do texto euclidiano, onde a língua portuguesa atingiu momentos dos mais vigorosos e sublimes.

 

(*)  Seminário Internacional “100 anos sem Euclides”, em Cantagalo, RJ, a 26 de setembro de 2009.

 

 

03/10/2009

(emelauria@uol.com.br)

 

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