Em desfavor do cigarro

 

 


Ipê-branco no Largo do Mercado

 

 

Sei, sei que até há um dia  consagrado à luta mundial contra o tabagismo, hábito ou vício considerado de dificílimo abandono pela maioria de seus dependentes.  Mais difícil do que o alcoolismo.

 

 O  governo brasileiro,  há  já muito tempo, fez inserir em jornais matéria que se há de reconhecer corajosa: o Ministério da Saúde advertia que fumar fazia mal ao Brasil. Corajosa por quê? Porque por muito e muito tempo se escondeu dado fundamental do problema: como os impostos incidentes sobre os cigarros são os mais altos de que se tem notícia, ultrapassando os setenta por cento do preço final,  as fontes arrecadadoras de tributos evitavam falar nesse mau negócio que era escorchar o pobre fumante e ao mesmo tempo gastar rios de dinheiro com as vítimas do vício de fumar. Ou em outras palavras – ainda se arrecadando bilhões e bilhões, essa fábula de dinheiro não vinha dando para cobrir os gastos com as tantas vítimas de câncer, acidentes cardiovasculares, doenças respiratórias, enfisema pulmonar... A campanha antitabagista chegou a tal ferocidade, que cada carteira de cigarro traz terríveis ilustrações sobre os males causados aos pulmões, ao coração, à boca, à fertilidade. Circula mesmo a piada do sujeito que, ao comprar seu cigarrinho, pede à balconista que ao invés de “cigarro provoca impotência sexual”, lhe desse “cigarro provoca câncer pulmonar”...

 

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Às vezes se dá destaque talvez exagerado à peculiaridade da cidade  de Sales Oliveira, na região de Ribeirão Preto. Lá, a grande maioria dos plantadores de milho pouco se preocupa com o destino do grão colhido; o que eles querem é assegurar a boa qualidade da palha do milho, usada na confecção do mais forte tipo de cigarro existente – o de fumo de corda, ainda de alto consumo na zona rural e em cidades de predominância agrícola.

 

Eu, que durante um quarto de século (ou mais) emprestei meu pulmão à peçonhenta fumaça do tabaco, lá uma vez ou outra enfrentei cigarrinhos de palha, ou de fabricação caseira ou  da marca Pachola,  os mais indicados para espantar mosquitos nas pescarias.  Acabei, depois de algumas tentativas frustradas e pesados sacrifícios, desvencilhando-me da dependência. Cheguei mesmo a escrever um texto – “Fumante licenciado” – sem dúvida o mais transcrito de quantos tenho publicado.

 

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Conheci um sujeito, de apelido Canindé,  em Miguelópolis,  que era pra lá de original:  secretário do Ginásio Estadual, passava boa parte  das noites no jogo de cartas, não tinha nem um dente, nem um fio de cabelo e fumava (se houver exagero não será meu, mas dele) entre seis e oito maços de cigarros por dia, ou seja, entre cento e vinte e cento e sessenta unidades. Várias vezes o vi acendendo um cigarro em outro!

 

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Meu pai jamais deixou de fumar. Tendo morrido aos oitenta e oito anos, fumou por mais de setenta, quem sabe mais de setenta e cinco, porque se começava muito cedo.  Diferentemente da lei paulista que pegou, ninguém estranhava que se fumasse em qualquer lugar, até mesmo no quarto de dormir. Minha mãe, que ficou casada durante cinquenta e oito anos com ele, foi fumante passiva esse tempo todo... Eu mesmo dei as primeiras baforadas aos doze ou treze, na segunda ou terceira série do ginásio, por mera imitação dos colegas mais velhos e/ou por afirmação machista, conforme a  praxe.

 

Os primeiros cigarros que fumei, eram filados de meu pai – Liberty ovais, que mereciam com justiça a dura classificação de arrebenta-peitos. Uma vez, em que puxava umas baforadas sentado numa pedra no meio do córrego que passa por nosso quintal, fiquei tonto e caí n’água.

 

A marca foi retirada do mercado em nossa região, mas continuou  fabricada no Rio de Janeiro pela Sousa Cruz. Lembro-me de uma vez que trouxe de lá  dois pacotes de presente a meu pai. Ele os recebeu como  especial dádiva. Era um cigarro forte e de fumo compactado, de modo que se a pessoa o deixasse aceso no cinzeiro, ele se apagava logo, bem diferente dos cigarros de agora, que  se queimam sozinhos.

 

Mas com a passagem dos anos, meu pai foi abandonando o cigarro de papel. Dei-lhe certa vez um pacote de  Minister,  ele já andava pela casa dos oitenta e  só os fumou de vez em quando, durante meses, sem maior prazer. Disse-me que eu já não precisava me incomodar com aquilo. Estava na fase definitiva do cigarro de palha feito por ele mesmo, numa operação que tinha algo de filosófico, de exercício de paciência.

 

A palha, conseguida às vezes ainda na forma bruta de envoltório de espigas, era selecionada por critérios muito subjetivos, que envolviam espessura, textura, cor e nem sei mais quê. Apará-la com tesoura na medida certa, alisá-la e molhá-la  até atingir a quase consistência do papel, demorava para cada cigarro em preparação no mínimo quinze minutos, mas podia chegar a muito mais, dependendo da animação da conversa concomitante travada com algum amigo chegado.

 

O fumo, comprado  em pequenas quantidades para não mofar, ressecar ou desandar,  tinha também características próprias jamais percebidas por leigos. Alguém ainda sabe, pela grossura, cheiro e cor da fumaça, distinguir um tietê, um rio das pedras, um mineiro, um gaúcho, um goiano ou um reles macaio?  As discussões travadas em torno das virtudes e defeitos de uns e de outros eram por vezes tão acaloradas quanto as que hoje dividem artificiosamente os admiradores desta ou daquela marca de cerveja, desta ou daquela cachaça, deste ou daquele uísque.

 

Picava-se com o máximo cuidado o fumo com o canivete apropriado. Era colocado no côncavo da mão esquerda (se o usuário não fosse canhoto). De vez em quando, interrompia-se o corte do fumo e o material já picado  era como que massageado com as duas mãos, para ficar bem solto. Quando estivesse no ponto,  cuidadosamente espalhado por toda a extensão de um sulco da palha escolhida. Tinha início, então, a última e delicada etapa de se enrolar a palha, sem se deixar o fumo escapar por nenhum dos dois extremos do sulco. (Quantas vezes mãos inábeis derramaram tudo!) Nessa fase era fundamental passar-se a língua por toda a extensão da palha ainda não enrolada, para ela ficar maleável e garantir a dobradura em seus dois extremos.  E assim, depois de um cerimonial demoradíssimo, estava pronto o cigarrinho tão aguardado, que podia ainda receber um amarrilho também de palha, por via das dúvidas.

 

Um bom cigarro daqueles tinha por obrigação durar umas duas horas e ser reaceso ao menos quatro, cinco vezes. Daí a preferência pelos isqueiros do tipo binga, ou seja, um grande depósito de combustível (geralmente querosene ou gasolina), um cordão que se encharcava e se incendiava no pavio quando se produzia a centelha por causa do atrito de um tipo de mó com a chamada pedra de isqueiro. Complicado, não? O princípio de funcionamento era o mesmo desses isqueiros descartáveis que hoje se compram a ínfimo preço em qualquer lugar.

 

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Ora, dirá com justificada estranheza algum leitor mais invocado: como se associar a comemoração do dia internacional de abstinência de tabaco com a descrição minuciosa da elaboração de um cigarrinho caipira?  Nem eu sei direito. Talvez uma forma de tardiamente me referir à operação-desmanche que mulheres de minha casa fizeram logo depois do enterro de meu pai: retiraram, de um recatado canto de armário de copa, todo o seu equipamento de fumante e deram compulsório sumiço às reservas de palha e de fumo, ao  canivete, ao isqueiro. Fiquei sabendo disso muito tempo depois, assim como do pertinente comentário de uma delas, então pertencente à família:

 

- Noooossa! Não deviam ter mexido tão depressa  nas coisas dele. A pessoa morre, mas o espírito dela demora a se afastar dos lugares onde viveu. Ele se sentirá muito mal sem seus apetrechos de fumante...

 

03/09/2011
emelauria@uol.com.br)

 

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