ACASOS PROVIDENCIAIS

Diz o Aurélio que acaso é um conjunto de causas imprevisíveis e independentes entre si, que não se prendem a um encadeamento lógico ou racional, e que determinam um acontecimento qualquer.

Johnny Alf, dos maiores letristas de nossa música popular, para mostrar a força do acaso em matéria amorosa, comete emEu e a brisaum dos mais perdoáveis pleonasmos, quando afirma com toda a seriedade que o inesperado faz uma surpresa, como se fosse possível pensar que o inesperado não se alimentasse de surpresas.

Quem não tem em sua vida um, dois, muitos exemplos da mão do acaso interferindo poderosamente na urdidura do futuro? Eu mesmo poderia citar alguns,   se em lugar disso não quisesse tratar do acaso atuando no campo específico da literatura.

Se não fosse pessoa de bom gênio um tal Gonçalo Borges, capaz de perdoar e relevar pequenas ofensas, muito provavelmente a pobre literatura portuguesa teria ficado mais pobre ainda com a perda do mais glorioso de seus vultos, Luís Vaz de Camões. É que na procissão de Corpus Christi de 1552, em Lisboa, Camões viu dois homens emascarados brigando com o tal Gonçalo Borges, tendo logo Camões, de gênio belicoso, acudido em favor dos mascarados, amigos seus. Ficou comprovado que de prepósito, com uma espada ferira ao dito Gonçalo Borges de uma ferida no pescoço, junto ao cabelo do toutiço. (Acaso maior seria algum leitor meu, sem se mexer da cadeira, sem apelar para o Aurélio, para o Houaiss ou assemelhados,  saber o que vem a ser toutiço, nada mais do que a parte posterior da cabeça, o cachaço, a nuca.) O processo arrastou-se por meses, nem tanto pelos ferimentos causados, mas pelo ultraje cometido por Camões – o de não se comportar com o necessário recato durante aquela procissão, ainda hoje a mais importante e solene da Igreja Católica. Esse procedimento desrespeitosíssimo poderia redundar em prisão, em exílio, em sumiço, em fim dos projetos poéticos. Mas, para a glória da língua portuguesa, em fevereiro do ano seguinte, passa-lhe o mesmo Gonçalo Borges uma “carta de perdão”, por ser sã a ferida, sem aleijão nem desformidade e para que o Senhor Deus lhe perdoe seus pecados. A Justiça (vai-se saber com que tipo de tráfico de influência) também acabaria perdoando ao Poeta, que o próprio ofendido o havia voluntariamente feito, contanto que o ofensor pagasse quatro mil-réis pera piedade... O que foi feito, mostrando que a existência de caixa-dois é muito mais antiga do que se possa imaginar. Bom Gonçalo Borges: preocupado em assegurar para si o reino dos céus, achou de ótimo alvitre perdoar ao desafeto. Não se sabe se conseguiu alcançar  sua tão alta inspiração; ganhou, ao menos, a glória nada efêmera de passar à história por haver levado uma surra do ilustríssimo versejador, em dia e local pouco adequados a desforços pessoais.

Se não fosse diretor da Tipografia Nacional o romancista Manuel Antônio de Almeida (Memórias de um Sargento de Milícias, 1852) quando alguém, por certo despeitado, acusou um mulatinho tipógrafo-aprendiz de ficar lendo pelos cantos nas horas de serviço, provavelmente a literatura brasileira poderia haver corrido o risco de ter ficado muito mais pobre do que é. Porque o tipógrafo-aprendiz  era um certo Joaquim Maria Machado de Assis, então com dezessete anos  e autor de apenas um poema – “Quando ela fala”, de visível inspiração shakespeariana e publicado na prestigiosa Marmota Fluminense. Estivesse Manuel Antônio de Almeida, o seu Maneco, preocupado com a produtividade empresarial  da Tipografia (hoje Imprensa) Nacional, por certo passaria solene descompostura  no Machadinho, espetando-lhe o dedo indicador no nariz  e esbravejando coisas como:”Então, seu poetinha de meia-tigela! Aqui no serviço não! Se quiser perpetrar seus versinhos de pé-quebrado ou ler seus livrecos de carregação, faça-os longe daqui! Este é um lugar de trabalho profícuo e honesto, não um valhacouto de sonhadores! (Valhacouto, facilito, significa refúgio, abrigo, asilo.) Ao invés disso, Manuel Antônio de Almeida – ele próprio um exemplo de pouca ordem no escrever, a ponto de terminar capítulos de seu livro  bem à vista do ansioso empregado do Correio Mercantil, que o publicava em episódios diários, – estimulou o rapazinho franzino e com certeza até lhe deu a entender que ali  podia desfrutar moderadamente de alguma mordomiazinha literária. O poetinha de meia-tigela acabou abandonando os versos e se dedicando a garimpar a alma humana em Quincas Borba, Memórias Póstumas de Brás Cubas e Dom Casmurro.

Se não fosse o poeta e editor Augusto Frederico Schmidt  ter  lido com atenção e prazer os pouco formais relatórios  que Graciliano Ramos, como prefeito de Palmeira dos Índios, enviou ao governador de Alagoas, é quase certo  que permaneceria na provinciana obscuridade o futuro grande romancista de Vidas Secas, São Bernardo e Angústia. Foi preciso Schmidt  intuir que quem escrevesse como Graciliano escrevia, deveria ter pronto um romance, que jazia no fundo de uma gaveta. De fato, jazia alinhavado o romance Caetés, a que o autor dava pouco ou nenhum valor. Ainda hoje se lêem com especial deleite as observações de Graciliano sobre como sempre foi duro administrar pequenas comunidades sem os mínimos recursos financeiros e dominadas pela centenária política do nepotismo, do clientelismo.

Se não fosse uma carta que Edoardo Bizzari, adido cultural do consulado italiano em São Paulo e diretor do Istituto Italiano di Cultura, escreveu   a Guimarães Rosa, solicitando-lhe autorização para verter o contoDuelo”, de Sagarana, não teria existido a incomum correspondência  entre ambos. Iniciada em 1959, terminou em 1967, com a repentina morte de Rosa. Embora os dois se tenham encontrado uma vez e se dirigido palavras protocolares enquanto um elevador os conduzia a um terceiro andar, cartas que depois trocaram  dão testemunho de uma bela cooperação intelectual e humana. À custa de muito perguntar a GR sobre o significado de palavras sertanejas e arcaicas e de invenções poéticas, Edoardo Bizzarri  como que obrigou o grande romancista a revelar conscientemente  todos os seus processos de elaboração intelectual, ordenando o seu arsenal de naturalista, poliglota, estudioso da literatura, da mitologia clássica e da religião. O resultado desse incomum esforço a que o tradutor submeteu o autor, foi o conhecimento íntimo da estrutura da obra rosiana e a certeza  de como as afinidades intelectuais acabam suprindo, às vezes até vantajosamente, as ausências físicas.

Neste sentido específico, valem ainda dois notáveis exemplos: a assistência de carinho dada por Francisco Escobar a Euclides da Cunha, não na elaboração de Os Sertões em nossa cidade, mas  por toda a vida do malogrado escritor. Nem se poderia imaginar pronto em 1901 o grande livro euclidiano se aqui, neste ermo do rio Pardo, não residisse Escobar, o doutíssimo Escobar, na avaliação sempre exigente de Rui Barbosa. O outro exemplo está na longuíssima correspondência mantida entre uma curiosa leitora e bibliófila  norte-americanaum escrupuloso livreiro inglês. É o enredo do belo filme Nunca te vi, sempre te amei, com o insuperável Anthony.Hopkins e a recém-falecida Anne Bancroft.

 

03/09/2005
(emelauria@uol.com.br)

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