Dicionário amoroso

 |
Ponte de Santa Ifigênia , São Paulo, 1827 de Debret
 

Não, nem de longe fique preocupado (a) com a possibilidade de, por caduquice não tão precoce, eu me aventurar  a organizar  um dicionário amoroso explícito, revelador, exemplificativo.

Nada disso. É que li algo que me agradou e quero compartilhar este bom sentimento com meu seleto leitorado, nestes tempos bicudos, de predominância de análises ruins, negativas. Excetuado o otimismo compulsório de Dilma e de Mantega, pouca gente vem acreditando  num Brasil melhor, ao menos em curto prazo.

Gilles Lapouge, hoje com oitenta e nove invernos nas costas, escreveu há poucos anos um dicionário amoroso -  Dictionnaire amoureux du Brésil,  de 2011 -  com seiscentas e cinquenta páginas em que só trata de coisas boas de nossa terra.

Todos os assuntos são focalizados de modo positivo, desde o primeiro tópico, que trata de abelhas. Ele fala bem até das abelhas-africanas que no começo de sua vinda para cá se transformaram em pesadelo por causa de sua sanha assassina contra outras espécies nativas. Pois não é que, com algum tempo de convívio com nossas melíferas, as ferozes africanas  se acalmaram, se misturaram  e hoje  são excelentes polinizadoras? O Brasil é mesmo campeão de mestiçagens bem-sucedidas. Assim é que deveriam ser todas as coisas e todas as pessoas -  nada de propósitos maus, nada de pensamentos derrotistas, nada de superados preconceitos ou de velhas queixas.

Desde 1951, Gilles Lapouge, francês e correspondente jornalístico, é funcionário do Estadão, tendo vindo ao Brasil inúmeras vezes. Quando escreve sobre nosso país, tem sempre uma atitude de compreensão e faz o possível para situá-lo num contexto mais amplo, numa perspectiva mundial.

Mas não só de abelhas cuida Lapouge. Escolhe verbetes que dão margem a amplas divagações, a contrastes e confrontos, a indagações filosóficas, a demonstrações de profundo conhecimento, tudo bem temperado com fino humor e benevolente compreensão das peculiaridades desta terra e desta gente tão diferenciada.

Cito o caso do café. A propósito desse termo, Lapouge lembra como as sementes da frutinha árabe entraram clandestinamente no Brasil;  fala da escravidão negra, da riqueza de São Paulo, da vinda dos imigrantes europeus, da crise de 1929, da lenta industrialização, das fortunas que construíram a Avenida Paulista e seus palacetes.

Quando se debruça sob a influência de seu conterrâneo Jean-Baptiste Debret, o autor faz uma espécie de recomposição de boa parte da história brasileira da segunda metade do século XVIII e da primeira do século XIX. Conta com graça e minúcias a vida deste engenheiro e pintor (1768-1848)  que veio ao Brasil integrando a Missão Artística Francesa de 1816 e aqui permaneceu por quinze anos, tempo suficiente para percorrer boa parte do país e coligir material que deu origem à sua Viagem pitoresca e histórica ao Brasil com  cento e cinquenta e três pranchas e respectivos textos de descrição. São cenas de rara beleza que retratam paisagens, personagens e fatos históricos, a cultura e a índole do povo brasileiro.

Imagine você o que pôde reunir Lapouge em torno de palavras férteis como favela, música, Rio de Janeiro, sacristias.  Na verdade, seu livro, que bem merece ganhar uma versão em português, faz dos termos dicionarizados um forte pretexto de falar de tudo e de todos, com a permanente preocupação de só ressaltar qualidades. E é por isso mesmo que o Dictionnaire contrasta com o que hoje se escreve azedamente sobre má qualidade dos serviços oferecidos ao povo, precariedade da saúde pública, deficiências do ensino, excessos da carga tributária, insegurança social, inflação rondando feia e entravando o crescimento menos que medíocre do Brasil. A se crer no pessimismo todo que envolve a maioria dos escritos sobre nossa terra, nosso destino será inexorável e neste século todo não se alcançará sequer a meta de aproximação com os padrões do primeiro mundo. Outro problema será a existência do primeiro mundo no século XXII.

À vista do bom efeito causado no espírito do leitor de Gilles Lapouge, fico pensando no que surtiria entre nós  a elaboração de um dicionário amoroso com louvações à nossa São José do Rio Pardo, que anda também muito por baixo, perdendo em competitividade para suas vizinhas e  momentaneamente famosa não por causa de seus feitos culturais ou sociais, e sim por  pessoas e fatos que em nada engrandecem sua rica história.

Outro dia, recebi de amigo residente no exterior pedido de informação fidedigna do que ele, espantado e incrédulo,  havia ouvido e visto sobre nossa cidade no canal internacional de uma de nossas emissoras de televisão. Esse tipo de notoriedade põe a perder o que se fez e faz por aqui laboriosamente, em anos e anos de esforço e dedicação.

Em muito maior número do que aqueles que só lhe encontram ou causam defeitos e imperfeições, estão aí os rio-pardenses presentes e ausentes que têm bons olhos, bons ouvidos, bom gosto para apreciar nossas belezas e virtudes, naturais ou elaboradas, e que trabalham sinceramente em favor da terra que amam. Seria ótimo colocar tudo em forma de dicionário amoroso, composto a muitas mãos.

 

ALGO INCONFESSÁVEL EMERGIU

Que eu saiba, além de Pedro Nava, nosso maior memorialista, só Camilo Castelo Branco foi notório escritor de língua portuguesa que se matou com total indiscrição. Camilo porque estava a um passo da mais completa cegueira. E Pedro Nava, mergulhado em profundo mistério, cuja ponta agora o jornalista Humberto Werneck levanta, no Caderno 2  do Estadão de 21 de julho.

Lembra que Nava se meteu um tiro nas têmporas com revólver Taurus, calibre 32, comprado em 1980, quatro anos antes do fatídico 13 de maio de 1984. Tal como Camilo, também  Nava suicidou-se  num banco de praça pública e por motivo dos mais infelizes: estava sendo chantageado por um garoto de programa - circunstância que a imprensa descobriu no ato, mas sobre a qual silenciou por anos.

Coube a Zuenir Ventura em capítulo de Minhas histórias dos outros deitar luzes sobre a trajetória de Nava rumo a um silêncio sem apelo.

Conta Werneck que um ano antes, em 1983, portanto, entrevistou Pedro Nava, então entrando na faixa dos octogenários.

"Sou um suicidário", chegou a dizer.  "O calvário para o suicida é arranjar o revólver, providenciar o veneno, pendurar a corda no gancho, sentar-se no peitoril da janela" — frase monitória que põe na boca de um personagem.

Pedro Nava deplorava a erosão do corpo na velhice e insistia no esplendor da juventude e no primado do amor físico.

É dele esta confissão: "Só me falta uma experiência: morrer".

Triste, não?

 

03/08/2013
emelauria@uol.com.br

 

Voltar