Notícias de longes tempos

 


O fastígio do ipê-branco.

(No muro lateral da Escola "Dr. Cândido Rodrigues")

 

Estava lá, na pasta “Meus Documentos”, aquela relação de sessenta e poucos assuntos, cuja finalidade me fugira por uns instantes, apesar do título Notícias da infância e adjacências.

À medida que eu os fui lendo, percebi que se tratava de muito antiga proposta de escrever  a respeito de pequenos incidentes, incapazes, por si mesmos, de ter o fôlego necessário para uma crônica ou comentário menos sucinto.

Alguns me despertaram logo não só a atenção, mas a viva lembrança do que tratavam. Foi o caso de “O bilhar de Luís Greco”, “O caminhão no quintal”, “A casa do outro lado” e “O ladrão em fuga”.

Como poderia esquecê-los?

 


 

O bilhar de Luís Greco funcionava em frente ao Hotel Brasil e era o local preferido dos hóspedes viajantes, logo depois do jantar. Morando ali por perto, num sobrado onde hoje se ergue o edifício Trevisan, eu, com meus sete anos,  comecei a me deixar encantar por aquele ambiente  com três mesas  recobertas de feltro verde, fartamente iluminadas, onde homens fumando charutos, cigarros ou cachimbos  que enevoavam todo o ambiente, tentavam encaçapar umas bolas numeradas, usando para isso longos tacos. O som das bolas se entrechocando, a cara de tédio do proprietário, a visão de copos de cerveja descansando na borda das pesadas mesas,  o ruído das contas do marcador dos pontos assinalados, uma espécie de ábaco – tudo me retornou à memória com total clareza. Estava eu ali uma noitinha, absorto vendo as jogadas arquitetadas pelos disputantes, entendendo as regras e particularidades do jogo, quando meu pai entrou ali pisando duro, me tomou pelo braço e me fez ir logo para casa. Seriam oito horas da noite.

No curto caminho, de semblante fechado e voz enérgica, deu seu recado definitivo:

- Aquilo não é lugar para criança. Você não vai mais lá, ouviu?

Eu ouvi, sim, com toda certeza, a ponto de nunca ter aprendido a dar uma boa tacada. Não deixei, contudo, de considerar que ali tive meu primeiro e inconseqüente contato com três poderosos vícios: o jogo, a bebida e o fumo... Pai era e é para isso.

 


 

Quando nos mudamos para a Várzea (ainda eu estava nos sete anos e iniciava o curso primário no Grupo Escolar Dr. Cândido Rodrigues), ganhamos não só uma casa muito grande, com um quintal de descomunal tamanho a ponto de abrigar um campinho de futebol e uma carcaça de caminhão. O campinho começava na cerca da rua, onde hoje existe um enorme portão da lavanderia. Avançava uns trinta metros e apresentava sério problema no controle  das bolas, geralmente de meias, umas poucas de borracha e apenas por exceção alguma com câmara de ar: não tinha nível. Era bem inclinado, as bolas escorriam pela lateral, era uma dificuldade marcar um só gol.

Porém a grande pedida era a carcaça do abandonado caminhão com rodas mas sem pneus, com direção mas sem banco nem carroceria. Os vidros das portas subiam  e desciam, a vareta do medidor de óleo tinha um nauseante cheiro de coisa queimada. Quantas viagens longas fizemos  naquele imprestável caminhão! Nosso pé não alcançava o pedal da embreagem, de modo que precisávamos dividir tarefas: um dirigia sem sair do lugar, outro manejava com a mão a embreagem e um terceiro mudava as marchas, a cada dia mais raspantes no duro câmbio. Um dia, eu voltava na escola, fiquei sabendo que viera outro caminhão, muita gente e duas pranchas de madeira. Levaram a carcaça embora, sabe-se lá para que ferro-velho. Levaram junto um dos encantos do quintal.

 


 

Já escrevi o suficiente sobre a casa ao lado da nossa, aqui na Siqueira Campos; aquela construída literalmente em cima de um córrego. Um dia destes, meu primo Guilherme Bianchin comentou comigo o texto recentemente republicado. Ele me confirmou alguns detalhes sobre coisas e pessoas, o que me deixou  bastante feliz de haver retido na memória um assunto de pouca importância para quase todas as pessoas, mas bastante evocativo de um tempo que, positivamente, não tem como voltar. Ainda bem.

Cada vez mais me convenço de que o grande drama de envelhecer é ir perdendo as referências das paisagens e das pessoas. Quando se derruba um casarão, destrói-se também um mundo de pontos de apoio que já não faziam sentido para quase ninguém, exceto para os velhos. Quando um velho enterra um amigo, sepulta  muito mais do que um corpo inerte, mas testemunha importantíssima de tanta coisa vista e vivida por poucos. Em suma: velhos vivem na dependência de testemunhas que confirmam seus relatos, ratificam suas opiniões. Sem esses testemunhos cada vez mais raros, os velhos correm o risco de ser considerados  fracos da bola, caducos.

Pois a tal casa  do outro lado era de uma singularidade única: abria-se a porta da sala que dava diretamente para a rua e corria-se o risco de cair de ao menos meio metro de altura. É que tudo levava a crer que a tal sala fosse nivelada com a calçada. Mas não era. Lá estava o chão de terra batida na permanente espera do acabamento, talvez assoalho de madeira,  que nunca se concretizou. Lá morava uma família pobre. Dos filhos, lembro-me  bem de um, contemporâneo no Cândido Rodrigues. Nome: Aristides. Apelido: Rinte. Obscura origem de apodo tão incomum: sabe-se lá por quê, algum companheiro de molecagem o achou parecido com um cachorro famoso dos filmes seriados americanos que víamos no Cine Pavilhão XV de Novembro: Rintintim...

Não é preciso dizer que a casa do outro lado também sofreu com as enchentes e foi demolida logo depois de uma delas, para ali se criar um espaço  precursor dos piscinões de São Paulo: reservava-se um lugar para acumulação da água barrenta que não tinha vazão na pequena ponte que atravessava a rua.

 


 

O caso do ladrão em fuga causou comoção na cidade toda, certamente por falta de assuntos mais palpitantes. Não havia televisão, rádio era coisa para gente rica...

Escoltado por dois praças, um sujeito ia ser transferido de cadeia, daquela cadeia instalada no térreo do recuperado prédio onde agora se instalou a Biblioteca Municipal, para a cadeia de Casa Branca, talvez, ou para uma penitenciária.

Não se sabe se por falta de algemas ou para não humilhar o coitado, os soldados o deixaram de mãos livres e deram a elas  importante tarefa: segurar as calças do pobre diabo. Sim, isso mesmo. Tiraram-lhe o cinto e confiaram no seu sentido de pudor: se ele descuidasse um pouco, as calças se arriavam, porque o cós estava muito folgado. E lá iam os dois praças conduzindo o ladrãozinho pela Rua Saldanha Marinho, rumo à estação da estrada de ferro. Estavam vigilantes até certo ponto, confiantes em si mesmos e na força da lei,  cumprimentando este ou aquele sujeito que lhes perguntava sobre o trabalho  incomum que realizavam.

De repente, num zás-trás, o ladrão se  pôs a correr, rua abaixo. Quando as calças quiseram atrapalhá-lo, ele agiu rápido, livrou-se delas. O soldados gritaram com ele, sacaram as armas e tiveram medo justificado de acertar tiros em pessoas erradas. O ladrão, em ceroulas, atravessou a linha do trem , enveredou pela avenida arborizada, cruzou a ponte do Euclides da Cunha e sumiu lá pelos lados do Santo Antônio, quem sabe  escondendo-se naquele morro íngreme, de mato fechado, onde mais tarde se ergueria a estátua do Cristo. 

Eu, pelo menos, jamais ouvi alguém contar  o desfecho dessa fuga espetaculosa, menos trágica do que outra mais recente em que, o preso algemado, se jogou no rio Pardo e só foi encontrado morto dias depois.        

 

03/04/2010
emelauria@uol.com.br)

 

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