Para
surdos,
ou
quase
De
vez
em
quando
alguém surge
com
idéias
simples e
práticas, destinadas a
sanar
pequenas
mas significativas
dificuldades.
Leio
que o
deputado Luís Antônio Fleury
Filho (PTB – SP),
aquele
mesmo Fleury de
não
muito boa
lembrança
como
governador de
São Paulo, apresentou
em Brasília
projeto de
lei
que
torna
obrigatória a
adoção de
legendas
em
português
nos
filmes
nacionais,
para
permitir
que
portadores de
deficiência
auditiva compreendam o
desenrolar das
histórias.
A
proposta tem
por
base
dados do
censo de 2000, do IBGE,
que indicam
haver
mais de
cinco
milhões de
brasileiros
com alguma
dificuldade
para
ouvir.
Não se sabe
bem
por
quê, estão excluídos do
projeto curtas-metragens e
obras exibidas
em
festivais.
A
idéia
em
si
não é
nova.
Basta
lembrar
que há
bem
mais de
meio
século a
escritor e
dramaturgo irlandês George Bernard Shaw
já pleiteava
que os
filmes
norte-americanos
em
exibição na Inglaterra tivessem
legendas
em
inglês.
Era
outra a motivação do
sarcástico homenzinho,
autor de Pigmalião (depois
transformado no musical My Fair Lady), de César e Cleópatra:
ele achava
que os
americanos falavam
outra
língua, de
tanto
que deturpavam o
idioma de Shakespeare.
Mas
verdade seja
dita: é
muito
mais
fácil
entender os
programas da TV Española do
que o
noticiário da
Rádio e
Televisão Portuguesa
Internacional. E os
filmes e
novelas
feitos
em Portugal,
então?
Inaudíveis,
ou como se queixava o
sujeito num
telefonema daqueles
velhos
tempos de
aparelhos
com manivela:
- Fale
mais
claro, fale
mais
legível!
Um
primo
meu,
muito
surdo,
que dizia
ter uma
cachoeira na
cabeça e acabou se matando, lamentava-se da
falta de
legendas na
maioria dos
filmes na
televisão.
Acompanhar as
novelas?
Nem
pensar.
Por
isso, ia
muito ao
cinema.
Aliás, os
bons
canais da TV
paga
não dublam
seus
filmes
por
muitos
motivos,
entre
eles: a
dublagem representa
sempre uma
perda de
qualidade
artística, na
interpretação. É preferível
suportar as
mais absurdas
traduções nas
legendas e
não
ouvir
um sujeitinho
ou uma sujeitinha
qualquer falando
em
lugar de
um Lawrence Olivier, de
um Marlon
Brando, de uma Gina Lollobrigida, de uma
Cathérine Deneuve...
Uma
noite destas,
minha
mulher e
eu fomos ao
Cine Colombo
assistir a Olga,
filme
nacional merecidamente cogitado
para
concorrer ao Oscar na
categoria “estrangeiros”.
Gostamos de
quase
tudo,
especialmente da
ótima
interpretação de Camila
Morgado, no papel-título. O
cinema é dotado de
muito
bom
aparelhamento, de
forma
que estranhamos a
dificuldade
que sentimos no
entender
certas
falas. Pensamos
logo
que se tratasse de
problema
nosso, de
deficiências nossas,
mas
não. Outras
pessoas
bem moças e
sem
nenhum
problema
auditivo
também
nos disseram
que haviam perdido
muitos
diálogos. O
defeito
era,
com
certeza, na
gravação da
banda
sonora.
Isso,
naturalmente,
sem se
contar
com
um ponderável
fator
adicional:
ir ao
cinema,
para as
novas
gerações,
já
nada tem de
ato
especial e
solene. O escurinho é
ótimo
lugar para
namorar,
para
comer
pipoca e
estourar o saquinho,
tomar
refrigerante
em
lata
aberta
ali
mesmo e,
sem nenhuma
cerimônia,
botar os
pés nas
poltronas da
frente,
conversar à
vontade. Mudamos de
lugar uma
vez no Olga,
por
causa do
animado
bate-papo de umas mocinhas na
fileira de
trás.
Pouco adiantou:
também
onde
nos assentamos,
lá nas primeiras
filas, tivemos de
suportar
muita prosinha de
adolescente,
pouco se importando
eles
com os
psius e
pequenas
broncas da
vizinhança. Fiquei imaginando o
que aquela
simpática e
graciosa loirinha (conferi a
sua
estampa quando as
luzes se acenderam),
tão
falante, podia
mesmo
estar entendendo daquele
enredo
denso e
tão pontilhado de
acontecimentos
históricos,
sem
cuja
compreensão
quase
nada
poderia
fazer
sentido.
Com a
possível
polidez e o
mínimo de
rudeza,
eu
por
fim dei a
ela
meus
parabéns
pelo
que havia perturbado do
sossego
alheio,
mas fiquei
com a
impressão de
ter sido
em
vão a
minha
censura.
Nem
isso
ela havia
entendido...
Quando
muito, as belas
cenas de
amor
entre Olga e Luís Carlos
Prestes.
Mas volto ao
projeto de
legendar os
filmes
nacionais exibidos
em
circuito
comercial. Espero
que
ele
passe e se torne
obrigação,
não
para
cobrar
multa das
empresas exibidoras
desobedientes,
como
ameaça o
projeto de
lei,
mas
para
proporcionar ao
maior
número de
pessoas o
prazer de
acompanhar os
enredos.
Até
nos
espetáculos musicais,
prática
semelhante vem dando
bons
resultados.
Muito
agradável,
por
exemplo, no
Teatro Municipal
ou no
Teatro
Abril
você
ter no
alto da
boca do
palco a
versão portuguesa do
que se
canta
em
outro
idioma.
Problemas de
surdez,
em
maior
ou
menor
escala,
sempre deram
margem a
qüiproquós,
casos hilariantes e
soluções imprevistas.
Não perco a
oportunidade de
contar
aqui uma historinha
que li há
pouco:
Um
surdo, daqueles
só comparáveis a uma
porta, do
alto de
seus oitenta e
tantos
anos, contava a
um
amigo as
notáveis
qualidades do ultramoderno
aparelho
que adquirira.
- Ele é
quase
invisível...
Agora entendo
tudo,
agora participo de
tudo...
Seu
interlocutor
então observa:
-
Sua
família deve
estar
muito
contente
com
isso...
- Não,
ainda
não disse
nada a
ninguém
lá de
casa. É
muito
instrutivo
ouvir o
que espontaneamente dizem
pessoas que têm a
certeza de
não estarem sendo ouvidas
por
velhos. O
único
problema é
que, nestes
dois meses de
uso do
novo
aparelho,
já modifiquei
três
vezes o
meu
testamento!!!
02/10/2004
(emelauria@uol.com.br)
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