Da face cruel da morte
Imagine você, na tranquilidade de um sábado de manhã, abrir o computador e encontrar um e-mail com estes dizeres: Caríssimos amigos, estou neste momento dando um adeus, pois a partir de agora, 9:48, estou de partida para um lugar onde vocês não poderão ir, não agora... pois estou metendo uma bala na cabeça. Deixo um pedido de desculpas a quem maltratei e um abraço àqueles que me quiseram bem. Vou em busca de um lugar melhor que com certeza encontrarei. Adeus !!! Isso me aconteceu a 7 de janeiro de 2012. Havia outros cinquenta destinatários do mesmo e-mail. Que fazer? Avisar quem? Impedir o quê? Uma alternativa tranquilizadora pensar que aquele e-mail do Tadeu, Luís Tadeu Silvestre, não fosse passar de brincadeira, brincadeira de péssimo gosto, que bem mereceria um pito daqueles. Lembro-me dele aqui em casa, trazido por Marina, então sua professora numa série inicial da Escola Estadual Dr. Cândido Rodrigues. Marina certamente gostava dele, apesar de algumas peraltices próprias da idade – tinha ele talvez uns oito anos. O tempo passou, perdemos contato, até nos encontrarmos de novo com ele, então um solícito garçom em restaurante da cidade. Depois, muito depois, a visita cerimoniosa e um mundo de histórias para contar: Luís Tadeu Silvestre estava no Brasil a passeio, em férias de seu trabalho de motorista de ônibus e caminhões na Europa, mais frequentemente em Portugal. Polido, boa figura, bem-falante. Como caminhoneiro tinha viajado pela Europa Ocidental (Portugal, Espanha, França, Alemanha, principalmente), prestando atenção a tudo, observando detalhes, certamente já com a ideia de um dia, longínquo ainda, colocar aquilo no papel, ilustrar com fotos de cada local visitado, escrever enfim um livro que contasse seus trabalhos, seus sofrimentos, suas vitórias. A vida de um afrodescendente brasileiro na Europa. Pois não é que, no começo de dezembro de 2010, dou de novo com Tadeu, agora na sauna do Rio Pardo FC? Muito conversamos naqueles ambientes acalorados, ele falando mais do que ouvindo, porque, afinal, quem havia deixado esta cidade, este País fora ele. Tinha novidades à beça. E então me fez a revelação: estava com um texto pronto, cerca de oitenta e cinco laudas, além de rico material fotográfico suficiente para montar um alentado volume. Formulou o pedido que não pude negar: que eu passasse um pente-fino no texto todo, acertando aqui e ali... Dias depois, recebi pela internet o minucioso relato e as muitas dezenas de fotos ilustrativas. Com as larguezas do tempo de aposentado, logo dei conta de minha tarefa, podando, arranjando isso ou aquilo, sugerindo algumas alternativas de textos, desde que nada ficasse mais parecido comigo do que com Luís Tadeu Silvestre. Pelo que me disse por telefone, ele pareceu ter gostado das emendas que fiz, porque no fundo nada de essencial fora modificado. Além do mais, em qualquer tempo, ele poderia descartar minhas sugestões e reaproveitar a forma original. Surpresa tive, ao final do texto, quando dei com suas duas homenagens: à sua mãe, viva e sã, e à minha falecida Marina, que segundo ele, introduziu-o no universo da escrita. Não sou de desestimular ninguém, mas levei grande susto quando Tadeu me revelou a extensão de seu sonho: publicar o texto e todas as fotos coloridas disponíveis, numa tiragem inicial de cinco mil exemplares. Ele não deve ter gostado de minha cara de espanto, menos ainda da sugestão que lhe fiz: antes dessa dispendiosa aventura editorial, lançar uma edição bem mais restrita, que fizesse de seu livro uma boa memória dos seus dez anos de Europa, destinada em princípio a um repositório familiar, a um belo presente a amigos seus dos dois lados do Atlântico... Pelo que senti, Tadeu – curioso e teimoso, como se classificava, não seguiria minha sugestão e tentaria partir desde logo para a grande edição, a menos que os custos de tudo o reconduzissem a uma realidade mais simples. Nada disso deve ter acontecido. Cultivando disfarçadamente seus males secretos, Tadeu sucumbiu às inconfessadas durezas da vida e saiu dela pela porta do fundo. Matou-se em inesperado lugar: a capela da Santa Casa. Isso no sábado de manhã, 7 de janeiro de 2012. Paz à sua atormentada alma. Retomo este texto agora, agosto de 2017, e me sinto até mal: não só eu havia esquecido tudo a respeito do infeliz Tadeu. Ninguém, desde o já distante 2012, havia dito ou escrito uma só palavra a respeito dele, de seu suicídio. O que significa isso? Antes de mais nada, que mal temos tempo de pensar em nós mesmos, muito menos nos outros. É isso: um futuroso jovem resolve, assim sem mais nem menos, pôr termo à própria vida e não há como demovê-lo de tão drástica decisão. Esta nossa atitude mental tão pouco cristã me parece hoje um triste sinal de nossos tempos e de nossa falta de solidariedade humana.
02/09/2017 |