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Minha participação na mesa-redonda sobre a atualidade de Euclides da Cunha, na Academia Brasileira de Letras,
Rio de Janeiro,  sob a presidência de Alberto Venâncio Filho, a 15 de outubro de 2009.

 

Foi Millôr Fernandes quem definiu o mais sinteticamente possível a Academia Brasileira de Letras: são 39 ocupantes vivos  e um morto rotativo. Muitos deles levam a sério essa pretensiosa ideia de que acadêmico é imortal e gastam uma eternidade para abrir vaga. Outros morrem assim sem mais nem menos, provocando desde logo a disputa pelo lugar.  Na verdade, algumas dessas brigas começam com o imortal ainda vivo, mas em estado que não admite retorno.

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No momento atual, a situação é bem outra, porque neste mês de julho de 2014  lá se foram desta para melhor (como sempre se espera) três acadêmicos, dois deles merecedores da mais ampla focalização pela mídia: João Ubaldo Ribeiro e  Ariano Suassuna.  Antes dos dois, com muito menos estardalhaço, morreu Ivan Junqueira.

Conheci os três, de modos bem diferentes.

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Conheci João Ubaldo como seu leitor, surpreendido primeiro com Sargento Getúlio, denso romance que Lima Duarte materializou no cinema; depois com O sorriso do lagarto, posto na televisão em minissérie de alta qualidade; desde muito tempo, como apreciador de suas crônicas semanais em que ele revela para o mundo os encantos de como a vida transcorre na baiana ilha de Itaparica.

Dele tenho a Obra seleta, em primoroso volume único da Nova Aguilar, Rio, 2005, capa dura, papel-bíblia, 1400 páginas. Comprei-o do livreiro-ambulante Feitosa em 2007, por cento e noventa reais, para escândalo de alguns familiares.

Figura ímpar João Ubaldo, especialmente porque conseguiu unir justa popularidade com um rigor temático de causar estranheza num país como o nosso, em que qualquer assunto costuma ser tratado com superficialidade e descontração. Quem diria, por exemplo, que o desbocado, boêmio e gozador João Ubaldo foi também um exigente erudito? Pois o foi em tudo, no cuidado com quem escreveu, no domínio do alemão, na capacidade de verter para o inglês o seu próprio texto. Assuntos escabrosos puderam ser por ele tratados graças ao eufemismo, a difícil arte de fazer como Eça de Queirós recomendava em seu realismo bem-comportado: a nudez crua da verdade sob o manto diáfano da fantasia. Quem já leu A casa dos budas ditosos sabe do que estou falando.

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Ariano Suassuna, conheci-o como embasbacado leitor de seu surpreendente Auto da Compadecida, feliz recriação contemporânea de um gênero de relevantes funções na literatura medieval portuguesa. Sim, foi pelo auto, forma pedagógica reposta em uso por Gil Vicente, no século XVI, que nasceu o teatro português e que José de Anchieta, agora santo, iniciou no Brasil a catequese dos índios. Pois através do mesmo e velho auto o paraibano-pernambucano Suassuana retomou a função educativa do teatro e deu a conhecer uma faceta da genialidade nordestina que encantou o mundo. Sempre é tempo de se (re)ver a Compadecida (com Matheus Nachtgaele e Selton Mello) e de se procurar entender o fundo significado de um movimento só na aparência popular - o Armorial, denodada iniciativa de Suassuna em reencontrar a feição erudita das manifestações artísticas coletivas.

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Ivan Junqueira faleceu às portas dos oitenta anos. Ocupou por quatorze, com total discrição, sua cadeira de acadêmico. Não mereceu maiores comentários porque não dispunha de  público cativo. Poesia e ensaio, seus dois campos de atividade, pouco apresentam de amenidades.

Diferentemente de Ubaldo e de Suassuna, Ivan nada produziu diretamente ligado ao regional, ao provinciano. Homem do Rio de Janeiro, conservou consigo as marcas do cosmopolita, mais voltado para o mundo exterior do que para as tantas peculiaridades de um Brasil de mil faces e de mil surpresas. Ler a sua biobibliografia é comprovar que ele sempre esteve ligado ao mundo cultural, à notícia, ao domínio do idioma próprio da comunicação em larga escala. Como criador, poeta que é, navega bem pelas águas encapeladas do universal, ainda mais que domina com perfeição o inglês, o francês.  Especializou-se em Baudelaire, T.S. Eliot e Dylan Thomas. Imagine-se que ele exerceu função que no mundo informatizado tende a desaparecer: foi colaborador de enciclopédias como a Barsa e a Delta-Larousse, hoje desprezíveis objetos em face das atualizações a todo momento dos googles da vida.

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Conheci Ivan Junqueira de modo inesperado. Por causa das comemorações do centenário de morte de Euclides da Cunha, tive o privilégio de proferir palestra na Academia Brasileira de Letras, numa já longínqua tarde de outubro de 2009. Grande parte de meu auditório eram rio-pardenses que se prestaram a uma difícil viagem de ir ao Rio e voltar em vinte e quatro horas. Mas na plateia, entre os poucos estranhos, estava um senhor atento, de cabelos e barbas embranquecidos. Terminada minha fala, saí do imenso auditório, talvez para movimentar as pernas, respirar fundo, aliviar a tensão que me dominava. Para surpresa minha, o senhor encanecido também saiu do salão e se aproximou de mim.

- Parabéns pela palestra...

- Ah, obrigado.

-Sou Ivan Junqueira, ocupo a cadeira 37, que tem por patrono Tomás Antônio Gonzaga. Sucedi a João Cabral de Melo Neto, em 2001.

- Muito prazer. Fico muito honrado com sua presença e atenção.

- Pois é. Gostei do que o senhor disse sobre Euclides, um escritor que pouco conheço. Geralmente essas palestras não me atraem, ainda mais porque as pessoas que não têm convivência com a Academia, aqui parece que perdem a naturalidade, a espontaneidade e falam mal, engasgam, confundem-se...

- O senhor me pareceu ter prática de falar. Estou certo?

- Bem, vivo uma longa carreira de professor secundário e universitário. Sei como é difícil manter a atenção e o interesse de pessoas por mais de alguns minutos.

- Isso é verdade. A cada dia essa capacidade de concentração vai diminuindo e creio que um dia ninguém mais terá coragem de falar em público. Tudo será em vídeo...

- Pois é... (Eu não sabia como me conduzir naquele inesperado diálogo.)

- Então fique o senhor sabendo que eu gostei e que aprendi coisas interessantes. Quem sabe até conseguirei ler Euclides?

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E assim, a Academia luta com três enormes dificuldades: arranjar substitutos à altura do prestígio universal de um João Ubaldo, da sabedoria despojada de um Ariano e da profundidade de reflexão de um Ivan.

Porque não nos iludamos: dar vida e colorido a tipos folclóricos como os frequentadores dos botecos de João Ubaldo, fazê-los discutir com propriedade e leveza os graves problemas nacionais; encontrar um velhote despojado, de voz esganiçada, com a coragem, em qualquer ambiente, de falar o inesperado sem usar gravata, como ousou e abusou Ariano; dominar o verso e o verbo a um tempo clássico e profundo, como era a condição de Ivan - aí estão três trabalhos de Hércules para os trinta e sete votantes da Academia, muitos deles desligados  demais para tanto, outros com pouquíssima condição de sequer avaliar o que perderam com as três mortes  e o que enfrentarão de  política literária no preenchimento das cobiçadas vagas.

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Leio com satisfação que Ferreira Gullar foi lançado candidato à vaga da cadeira 37.

 

02/08/2014
emelauria@uol.com.br

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