Exercícios da cidadania

 

VIVEMOS NO BRASIL um estranho período em que vigoram tanto as liberdades individuais constitucionalmente asseguradas quanto o mais deslavado desrespeito à  própria Constituição como um todo.

É tratado com a máxima consideração quem invade terras particulares e edifícios públicos, usinas hidrelétricas e campos agrícolas experimentais. Direitos humanos de seqüestradores e estupradores têm  quem os defenda, assim como há sempre profissionais prontos a socorrer chefes de quadrilhas, transgressores de toda ordem, de traficantes de drogas a exploradores sexuais de menores, de manipuladores de máquinas caça-níqueis a integrantes de organizações criminosas funcionalmente mais organizadas, armadas e disciplinadas do que os aparelhos do Estado. O Executivo, o  Legislativo e o Judiciário fornecem diariamente  à fogueira da mídia  lenha nova para se descrer do primado da lei e da ordem.

 

Não é hora nem lugar de se ficar remoendo aquilo que qualquer cidadão minimamente informado até se cansou de saber. Atualizando-se o que no século XVII já comprovava o padre Antônio Vieira (1608 – 1697), no Brasil conjuga-se o verbo rápio por todos os modos, não se deixando em nenhum momento de criar outros novos e esquisitos. Rápio, para quem não se lembra, é a primeira pessoa do singular do presente do indicativo do verbo latino rápere, furtar, rapinar.

 

Vieira  fala da chegada dos portugueses ao Brasil e da sanha com que se entregaram  aos vícios e à cobiça de toda sorte de bens.  Podemos atualizar o quadro com a chegada de alguém ao poder, genericamente localizado em Brasília, a própria capital surgida do nada em quatro anos, graças ao exercício ostensivo da corrupção e do tráfico de influências, desenvoltamente praticados.

 

Vieira, o maior orador sacro da língua portuguesa, tinha especial atração pela mundana atividade política, chegando mesmo a cogitar negociações para a venda de Pernambuco aos holandeses, além de defender acaloradamente a causa dos índios do Brasil, que os colonizadores sequer consideravam pessoas humanas. Por algum tempo foi recolhido a Roma, onde reconstituiu seu grande prestígio, chegando a confessor da rainha Cristina da Suécia. Clemente X, o papa da época, não teve dúvida em dizer que se deviam dar muitas graças a Deus por Antônio Vieira  ser católico, e não um herege reformador.

 

 Mas vamos a seu trecho famoso, geralmente conhecido por “Conjugação do verbo rápio”:

 

“Tanto que (= logo que) lá chegam, começam a furtar pelo modo indicativo, porque a primeira informação que pedem aos práticos é que lhes apontem e mostrem os caminhos por onde podem abarcar tudo. Furtam pelo modo imperativo, porque como têm o mero e misto império, todo ele aplicam despoticamente às execuções na rapina. Furtam pelo modo mandativo, porque aceitam tudo quanto lhes mandam: e, para que mandem, todos os que não mandam não são aceitos. Furtam pelo modo optativo, porque desejam quanto lhes parece bem; e gabando as coisas desejadas aos donos delas, por cortesia sem vontade as fazem suas. Furtam pelo modo conjuntivo, porque ajuntam o seu pouco cabedal com o daqueles que manejam; e basta só que ajuntem a sua graça, para serem quando menos meeiros na ganância. Furtam pelo modo potencial, porque sem pretexto nem cerimônia usam da potência. Furtam pelo modo permissivo, porque permitem que outros furtem, e estes compram as permissões. Furtam pelo modo infinitivo, porque não tem fim o furtar com o fim do governo,e sempre lá deixam raízes, em que se vão continuando os furtos. Estes mesmos modos conjugam por todas as pessoas, porque a primeira pessoa do verbo é a sua; as segundas, os seus criados; e as terceiras, quantas para isso têm indústria (= aptidão, perícia) e consciência. Furtam juntamente por todos os tempos, porque do presente, que é o seu tempo, colhem quanto dá de si o triênio (= período de governo); e, para incluírem no presente o pretérito e o futuro, do pretérito desenterram crimes  de que vendem os perdões, e dívidas esquecidas, de que se pagam inteiramente; e do futuro empenham as rendas e antecipam os contratos, com que tudo o caído e não caído lhes vem a cair nas mãos. Finalmente, nos mesmos tempos não lhes escapam os imperfeitos, perfeitos, plus-quam (= mais-que) perfeitos e quaisquer outros, porque furtam, furtaram, furtavam, furtariam e haveriam de furtar mais, se mais houvesse. Em suma, que o resumo de toda esta rapante conjugação vem a ser o supino do mesmo verbo; -- a furtar, para furtar. E quando eles têm conjugado assim toda a voz ativa, e as miseráveis províncias suportarão toda a passiva, eles, como se tiveram (= tivessem) feito grandes serviços, tornam (= regressam) carregados de despojos e ricos; e elas ficam roubadas e consumidas.”

 

(Antologia Nacional, de Fausto Barreto e Carlos de Laet, Rio de Janeiro, Livraria Francisco Alves, 1945, p.285-287.)

 

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CADA ENXADADA, UMA MINHOCA. Era isso que se dizia quando as coisas iam muito bem.

 

Hoje, a cada enxadada que a Polícia Federal ou órgãos investigativos da imprensa dão no curriculum vitae dos figurões da República, saem dez, vinte minhocas daquelas bem graúdas, minhocuçus, que fazem o cidadão comum ter vergonha de ser honesto.

 

E dizer-se que Prudente de Morais, o primeiro presidente civil brasileiro, saiu sozinho de trem de São Paulo para o Rio de Janeiro, ao assumir o Governo. Não havia uma só pessoa esperando-o na estação ferroviária. Dirigiu-se de carruagem de praça ao palácio do Itamaraty, governou o País por quatro anos, voltou para São Paulo e para se manter, precisou advogar imediatamente. Nada de aposentadoria, nada de benesses, nada de guarda-costas, assessores e assemelhados.

 

Prudente de Morais não foi exemplo isolado desse verdadeiro espírito público.

 

Euclides da Cunha, em carta a Lúcio de Mendonça, lembra que, chamado a palácio por Floriano Peixoto, então presidente, ouviu deste uma oferta de emprego público à escolha, quem sabe  até de presidente de um pequeno estado. Altivo, Euclides solicitou tão-somente que lhe fosse autorizado um estágio na Estrada de Ferro Central do Brasil, a que tinha direito como engenheiro. Ele mesmo tentou traduzir em palavras ao amigo a cara de espanto do presidente ante desprendimento tão grande:

 

Nada vales!” – deve ter pensado com seus botões o autoritário marechal.

Mas valeu, e muito.

 

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NÃO FALTAM PESSOAS BEM-INTENCIONADAS, de todos os níveis e de todos os lugares, na prática dos direitos e deveres próprios da cidadania..

 

O ruim, o péssimo de algumas delas, em si não más e até imbuídas de altos propósitos, é que vão blindando seus pensamentos e seus atos de forma a refletirem apenas opiniões individuais, sem jamais submetê-las ao crivo da crítica e da controvérsia. Quem não estiver com elas estará contra elas. Vêem incompetência, má-fé em tudo e em todos. Lá no fundo de seus pensamentos, presidindo suas ações, seus votos e seus prognósticos, a dura frase: “Depois de mim, o dilúvio”. Felizmente, as previsões catastróficas que tornam públicas nunca se confirmam.

               

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NO CURSO SOBRE EUCLIDES DA CUNHA que venho  dando às quintas-feiras na Biblioteca Monteiro Lobato, descubro ao fim de cada aula que o maior beneficiário deste estudo sou eu mesmo. Tenho-me obrigado a uma leitura mais acurada de Contrastes e Confrontos, livro cujo centenário comemorado este ano fornece o próprio lema da Semana Euclidiana de 2007 – “Contrastes e confrontos no Brasil”, sugestão de Maria Olívia Garcia Ribeiro de Arruda ao Conselho Euclidiano.

 

Os temas nele tratados, embora escritos entre 1894 e 1904, envolvem história, geografia, política, climatologia, diplomacia, ecologia, sociologia, direitos humanos, mantendo uma visão perturbadoramente moderna.

 

Tinha razão Euclides quando se rebelava contra os críticos audazes  que o consideravam autor de um livro só – Os  Sertões.

 

Se a morte não o tivesse atingido aos quarenta e três anos...

 

02/06/2007
(emelauria@uol.com.br)

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