Das travessias Nestes dias de tantas recordações e motivos para reflexões, com tantos convites ao pessimismo e ao desânimo, conto com a disciplina mental nascida não como produto do acaso, mas, antes, de severo exercício praticado ao longo de muitas décadas. Posso exercer em mim mesmo o controle da vontade e fixar a atenção nos assuntos que são o objeto de minhas leituras. E que variedade de leituras! Tenho sobre a mesa dois livros. Apanho o primeiro deles e me encanto com a felicidade do título: A travessura do canal da Mancha. Acho uma vitória alguém empregar com conhecimento de causa uma palavra brincalhona quando o assunto exigiria uma bem séria.
Perguntei a Maria Esméria do Amaral Mesquita, mãe de Ana Mesquita, se sabia quem tinha sido autor daquele achado poético. Não sabe, acha que a própria filha-autora. Mas o fato é que colocar travessura quando o esperável seria travessia, é de uma felicidade única, quando se pensa no esforço sobre-humano que sem dúvida foi vencer a nado o trajeto de trinta e seis quilômetros que separam Shakespeare Cliff (Inglaterra) de Cap Gris-Nez (França), em nove horas e quarenta minutos, enfrentando águas à temperatura de dezesseis graus. Foi o que fez Ana Mesquita a 23 de setembro de 1993, com isso tornando-se uma atleta que viveu experiências extremas, comparáveis apenas à escalada do Himalaia. Assim relata Claudio Pitt, prefaciador da obra: “De fato, o canal da Mancha é considerado o Everest da natação mundial. Em seu processo de preparação física e mental, Ana estendeu seus limites até onde sequer imaginava possível, tanta escuridão teve que atravessar, que uma luz mais forte iluminou seu interior, convertendo sua travessia numa experiência mística”. Quando minha aluna nos áureos tempos do Colégio Grafos, nem eu nem ninguém poderíamos imaginar Ana tão ousada e determinada, a ponto de bater o recorde sul-americano feminino na travessia a nado do canal da Mancha. Debaixo de sua aparente fragilidade, nela despontou, através dos tempos, a especialista em Educação Física, a fotógrafa criativa, a mestre em comunicação e semiótica, que leva uma vida cheia de coragem e de realizações. A dedicatória do volume que me oferta é simples e generosa: “Prof. Márcio, Este livro conta uma história duas vezes importante para mim: primeiro quando vivida e agora, contada e compartilhada. Espero que desfrute a travessia! Um abraço. Ana. 25.04.09” Nuno Cobra, também ex-aluno, hoje bem-sucedido preparador físico e autor de um best seller, escreveu belo texto para a orelha do livro. Ana é para ele a Ana Gaivota, “menina bravia e calma, vibrante e equilibrada, resoluta e leve, nadando como voa uma gaivota”. Entre as pessoas a quem Ana agradece, está o nosso polivalente Agenor Ribeiro Neto, que recebe dela severa advertência: Vê se toma cuidado com as sementes que você vai plantando por aí, às vezes dão de brotar!
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O outro livro é A biblioteca à noite, de Alberto Manguel, Rio de Janeiro, Companhia das Letras, 2006, tradução de Samuel Titan Jr. Não tire o leitor nenhuma conclusão precipitada. Tenho comprado muita coisa para ler, mas também este volume me foi ofertado... Por Regina Johas, ex-aluna de trinta e tantos anos passados, colega de turma de Ana Lúcia, minha filha mais velha. Regina, que virou doutora em comunicação visual na Alemanha, artista com ateliê e tudo, além de leitora quase compulsiva. A biblioteca à noite – saborosa crônica sobre o lugar dos livros e das bibliotecas na cultura humana.
Seu autor, argentino de nascimento e canadense por adoção, passou a infância em Israel, estudou na Argentina e vive atualmente no interior da França. Depois de morar em muitos países, Manguel consegue finalmente reunir seus livros num único lugar – uma propriedade rural em ruínas, cujo celeiro medieval é transformado em biblioteca. Nos quinze ensaios do livro, a biblioteca não será apenas espaço físico, mas também símbolo de ordem cósmica e social, como forma visível da razão humana, como fruto do acaso, como sombra de livros desaparecidos e como lar de leitores de todas as épocas e de todos os gostos. Entre esses leitores tão variados na origem e no tempo, ele coloca Cervantes lendo os papéis jogados pela rua, Walter Benjamin transportando seus livros de um exílio para outro, Jorge Luis Borges já cego, vagando pelos corredores da Biblioteca Nacional de Buenos Aires... Melhor do que tudo, porém, são as frases de reflexão de Manguel a respeito da biblioteca em si. Seleciono algumas:
02/05/2009
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