Águas de fevereiro/março

 
Um angulo inédito.

 

Não me lembro de período tão chuvoso como este de 2016. O consolo é ficar sabendo que no Google  estão armazenadas dez mil e quatrocentas referências ao tema chuva na literatura mundial. Pode ficar sossegado que usarei bem poucas.

Começo pela Bíblia  concretamente com o dilúvio,  a mais abundante das chuvas, e lembro a exemplar alegoria da casa construída em lugar inseguro que não suportou uma  tempestade mais violenta e se esbroou toda.

Grande estrago  fez  Chuva, de Somerset Maugham, em que  as águas rolaram sobre o presunçoso pastor que se julgava imune às contingências humanas e acabou ridiculamente apaixonado por uma dessas mulheres ditas de vida fácil. Na versão de cinema, a tal mulher foi representada por nada menos que Rita Hayworth, aquela atriz que havia posto o mundo a seus pés no papel de Gilda.

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Na literatura brasileira, a chuva muitas vezes vale por redenção, por retomada da riqueza; outras, como sinal de miséria, destruição. Está em Menino de engenho, de José Lins do Rego, a movimentada página do renascimento de um rio, extinto em seca brava e prolongada. Quando enfim caem pesadas chuvas nas cabeceiras, as águas vêm retomando seus espaços e sendo anunciadas de lugarejo em lugarejo em altos brados do mais puro júbilo: “ O rio vem vindo! O rio vem vindo!”.

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Como não se deliciar a cada releitura de “A Terra” em Os sertões, onde Euclides recria, pictórica e cinematográfica, a ressequida terra nordestina de repente ressuscitada pela água de abundantes chuvas? As primeiras delas, por causa da extrema secura da  terra e da temperatura elevada, nem chegam a tocar o solo e são prestes delidas, voltando à atmosfera em forma de vapor... “ O sertão é um paraíso” é página que qualquer dos grandes escritores  assinaria com orgulho. Nosso esquecido poeta conterrâneo Décio Bittencourt tem um longo poema, pateticamente declamado por ele neste Brasil todo, com sua bela presença e com invejável vozeirão radiofônico,  a respeito de inesquecível tragédia nordestina, o rompimento do enorme açude de Orós e os desastres provocados em sua rota de estragos e mortes.

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De que assunto poeticamente viável não tratou Fernando Pessoa? Relembrarei apenas sua “Chuva oblíqua”: Ilumina-se a igreja por dentro da chuva deste dia, / E cada vela que se acende é mais chuva a bater na vidraça... Alegra-me ouvir a chuva  porque ela é o templo estar aceso,/ E as vidraças da igreja vistas de fora são o som da chuva ouvida por dentro...

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 “Que maravilha”, de Jorge Ben (quando ainda não era Benjor), tem uns versos de chuva  que Artur Dapieve,  sensível cronista de O Globo, classificou como românticos e sensuais paca, das mais belas canções de amor da língua portuguesa: Lá fora está chovendo / Mas assim mesmo / Eu vou correndo / Só pra ver o meu amor. (...)  E ela vem chegando de branco / Meiga, pura, linda / Com a chuva molhando / Seu corpo lindo que eu vou abraçar... E a gente  no meio da rua / Do mundo, no meio da chuva / A girar...

Até Lobão (que nome para um poeta!) lançou há muitos anos o “Me chama” (ah, esses pronomes usados à moda brasileira não admitem correções): “Chove lá fora / E aqui faz tanto frio / Me dá vontade de saber / Aonde está você / Me telefona/ Me chama / Me chama / Me chama”. Lobão pode não entender as sutilezas do emprego de onde e aonde, mas seu apelo mexeu com muita gente, ainda mais na sentida interpretação da rouca e algo enigmática Marina.

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Ribeiro Couto, autor do delicioso texto do romance paulista Cabocla, que a televisão usa e abusa, entendia muito de chuva:

“Dia de chuva! Que lindo, / Que bom para a gente amar! / És a tristeza caindo, / Chuva que cais a cantar...”

“Dando graças vivi a vida inteira, / Inexplicável dom me foi o mundo, / Por mais que noutro acreditar eu queira / É neste que de chuva e sol me inundo.”

E Cecília Meireles?  “ A chuva chove mansamente... como um sono / Que tranquilize, pacifique, resserene... / A chuva chove mansamente... Que abandono! / A chuva é a música de um poema de Verlaine...” (Que achado esta rima “resserene” para Verlaine, hem?)

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Fecho o assunto com João Cabral de Melo Neto:

“ No Recife, se a chuva chove, / a chuva é a desculpa mais nobre / para não se ir, não se fazer, / para trancar-se no não-ser. // Mais que em cordas é chuva em sabres / que aprisiona o dia em grades; / e mesmo quem tenha gazuas / da grade viva, evita a rua”.

 

02/04/2016
emelauria@uol.com.br

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