Do caráter nacional

Não é de hoje que os estudiosos procuram sintetizar o que  venha a ser um brasileiro. Perseguem uma frase capaz de englobar em sua economia o que possamos ser nós, para o bem e para o mal.

Euclides da Cunha a encontrou para uma sofredora parcela do nosso povo: “O sertanejo é, antes de tudo, um forte”. Mas o conceito, já em si muito favorecedor e pouco científico, não pôde ser estendido a todo brasileiro.

Um tanto desiludido dessa busca, Mário de Andrade, pesquisador e escritor de largos méritos, colocou uma espécie de rótulo em  Macunaíma, seu herói mítico, símbolo do inconsciente coletivo:  o herói sem caráter.

A frase ganhou o geral agrado e nem sempre foi interpretada do melhor modo. Mário quis dizer que seu herói, um camaleão que se modificava ao sabor da imaginação popular, era um agregado de tantas origens e de tantas influências, que se tornava impossível caracterizá-lo. Daí a se dizer que o brasileiro não tinha caráter – foi um pequeno e definitivo pulo. A versão vale mais que o fato.

Sérgio Buarque de Holanda, pai do Chico e pensador de larga aceitação, encontrou o que lhe pareceu o adjetivo ideal para definir o brasileiro: cordial. O brasileiro é um homem cordial. Ele mesmo, porém, desde logo começou a solapar essa pretensa cordialidade, fazendo ver a seus seletos leitores que somos apenas cordiais na aparência e capazes de feias atitudes quando nossos interesses mais sérios são ameaçados.

Apesar da galopante  pasteurização das diferenças regionais que os meios de comunicação de massa vêm processando nos últimos  anos, ainda estamos longe de encontrar a caracterização, a catalogação ou a adjetivação sóbria, capaz de nos englobar como um povo, uma nação, um estado em que a lei, a moral pública e os costumes civilizados tenham plena aceitação.

Daí, não causar propriamente espanto, mas quando muito certa tristeza, o tipo de resposta que se possa dar a tudo que nós, brasileiros, passamos apontar como nossos próprios defeitos.

Vejamos se não:

Capistrano de Abreu, hoje esquecido historiador do século XIX, assim resumia o pouco-caso com que nossos compatriotas tratavam os bens públicos. “Se alguém coloca uma placa avisando que é proibido cuspir no chão, logo virá outro alguém que fará algo melhor: cuspirá na placa!”

Exageros à parte, qualquer pessoa de alguma vivência social compartilhará do pessimismo do antropólogo contemporâneo Roberto DaMatta, quanto a um pensamento autoritário e absolutamente antidemocrático que assalta qualquer brasileiro que se preze: Eu posso desrespeitar a lei, porque tenho méritos para isso! Ou em outras palavras: frente a qualquer incidente que envolva pequenas ou grandes transgressões, a tendência nacional brasileira é que se pergunte a quem aponta a transgressão: Você sabe com quem está falando? Quer dizer, todos são iguais perante a lei, mas alguns são MAIS iguais. (A essência desta frase é do visionário escritor inglês George Orwell, em A revolução dos bichos, satírica visão do comunismo russo.)

Na verdade, não será difícil apanhar grande parte dos brasileiros no contrapé. Parece haver, mesmo, um gostinho nacional de tirar alguma vantagem em tudo, o que garante a permanência de uma atitude ética há décadas batizada como lei de Gérson, segundo a qual é da natureza do nosso povo dar sempre alguma demonstração de esperteza, de raposice, de quanto é que eu levo nisso.

Quem, por exemplo, sente-se bem representado pelos vereadores, deputados estaduais, deputados federais e senadores atualmente em exercício? Bem poucos, com certeza. No entanto, esses representantes do povo foram livremente eleitos, por nós. Quer dizer, eu posso ter votado num deputado porque ele me prometeu um emprego, mas quero manter o direito de dizer sempre que a política no Brasil  é uma pouca-vergonha. Posso ter votado num candidato ao Senado mesmo sabendo que a ficha dele é mais suja do que pau de galinheiro: afinal, eu lhe devo um favorzão. Além do mais, quantos não dizem que o seu voto não tem importância e não tem força de modificar coisa alguma? Na realidade, nenhum voto individual tem essa força, mas a soma desses milhões de votos sem força é que dá  a fisionomia das casas legislativas, dos chefes do executivo em todos os níveis. Ou mais claro: nossos homens públicos têm a cara de nossos eleitores.

Circula por aí um texto muito contundente intitulado: “ O brasileiro está reclamando de quê?“ Nele vem um forte arrazoado de trinta e três exemplos das aparentemente pequenas canalhices que nos caracterizariam como povo. Se, espero eu, nenhuma pessoa consegue  corresponder às trinta e três péssimas qualificações, nenhuma, porém, se poderá julgar isenta de todas elas. Diz o escrito:

 

O brasileiro é assim:

1.      Saqueia cargas de veículos acidentados nas estradas.

2.      Estaciona nas calçadas, muitas vezes embaixo das placas proibitivas.

3.      Suborna ou tenta subornar quando é apanhado cometendo infração.

4.      Troca voto por qualquer coisa: areia, cimento, tijolo, dentadura.

5.      Fala ao celular enquanto dirige.

6.      Num congestionamento, trafega pela direita nos acostamentos.

7.      Para em filas duplas (ou triplas) em frente às escolas.

8.      Viola a lei do silêncio.

9.      Dirige veículo após consumir bebida alcoólica.

10.  Fura fila nos bancos, utilizando-se das mais esfarrapadas desculpas.

11.  Espalha mesas e churrasqueiras nas calçadas.

12.  Consegue atestados médicos sem estar doente, só para faltar ao trabalho.

13.  Faz “gato” de luz, de água, de TV a cabo.

14.  Registra imóveis no cartório num valor abaixo do comprado, muitas vezes irrisórios, só para pagar menos impostos.

15.  Compra recibos para abater na declaração de renda, para pagar menos imposto.

16.  Muda a cor da pele para ingressar na universidade através do sistema de cotas.

17.  Quando viaja a serviço da empresa, se o almoço custou 10, pede nota fiscal de 20.

18.  Comercializa objetos doados nessas campanhas em favor das vítimas de enchentes e secas.

19.  Estaciona em vagas exclusivas para deficientes.

20.  Adultera o hodômetro do carro para vendê-lo como se fosse pouco rodado.

21.  Compra produtos piratas com a plena consciência de que são piratas.

22.  Substitui o catalisador original do carro por  outro que só tem a casca.

23.  Diminui a idade do filho para que este passe por baixo da catraca do ônibus, sem nada pagar.

24.  Emplaca o carro fora do estado em que reside, para pagar menos IPVA.

25.  Frequenta os caça-níqueis e faz sua fezinha no jogo do bicho.

26.  Da empresa onde trabalha, leva pequenas coisas, como clipes, envelopes, canetas, lápis... como se isso não fosse furto.

27.  Joga, sem nenhum remorso,  lixo nas ruas e nas estradas.

28.  Comercializa vales-transporte e vales-refeição que recebe das empresas onde trabalha.

29.  Falsifica tudo, mesmo. Só não falsifica o que ainda não foi inventado.

30.  De volta do exterior, não declara na alfândega a verdade sobre o que traz na bagagem.

31.  Quando encontra algum objeto perdido, quase nunca o devolve.

32.  Se recebe troco a mais ou se o caixa do banco lhe entrega troco errado (a mais), faz de conta que não percebeu nem uma coisa nem outra.

33.  Embora jovem e forte, finge que está dormindo e não cede seu lugar no ônibus, trem ou metrô para nenhum idoso, nem mesmo para mulher grávida.

 

Essas costumeiras falcatruas poderiam ser classificadas como genéricas, porque há as específicas de cada classe social, de cada grupo profissional. Professor, por exemplo, só pode ficar nas genéricas: a classe é muito grande e dispersa, não tem como exigir direitos, quanto mais privilégios.

Já aquelas funções que possibilitam a criação de um sprit de corps, como dizem os franceses, legislam em causa própria, interpretam as leis à sua maneira, usufruem por muitas gerações das benesses do poder. Atendem perfeitamente à sutil distinção que o nada bobo presidente Castelo Branco percebeu, assim que foi  guindado às culminâncias do poder revolucionário:

“No Brasil,  não há direitos adquiridos, mas vícios consolidados”.

Solução? Nada à vista neste milênio.

 

02/04/2011
emelauria@uol.com.br)

 

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