Histórias
anciãs
Nem
sempre
velhos empregam
seu
tempo,
não
tão
precioso
assim,
para
dar
atenção aos
muito
mais
velhos. E
por
isso se perdem
singelos
casos,
testemunhos de
um
mundo
caduco,
que morrem
com as poucas
referências
ainda
presentes nas
memórias fragilizadas,
vez
por
outra embaralhadoras de
nomes,
datas e
locais.
Numa
tarde destas –
chuvosa e de
semana
santa --, o setuagenário dispôs-se a
dialogar
sem
pressa
com a
nonagenária e deixá-la
mexer
com
vagares no
mais
fundo das
lembranças. Dali saíram
casos
até
sem
final,
pedaços esgarçados de
um
passado da
longínqua
tradição
familiar, sufocada
pela
pressa de
agora, superada
por dramazinhos
alheios,
também tantas
vezes
sem
final e
muito
menos ligados a
pessoas de
carne,
osso,
emoções e
carências.
O
avô,
pai do
pai de
minha
mãe, chamava-se Ermenegildo (assim
mesmo,
sem o
agá inusual no italiano). Chegou ao Brasil,
com a
família
toda, viu, trabalhou
por
alguns
anos
sem
gostar
muito da
terra e da
gente.
Um
belo
dia arrumou as
malas, despediu-se de
todos (sabe-se
lá se
com
emoção) e partiu
com a
mulher,
para a Itália. Passaram os
dois a
ser
retratos na
parede,
cartas
que ralearam,
lembranças
que se esbateram.
Muito
tempo
depois, o
neto Mário resolveu homenageá-lo e deu o
nome ao
filho, grafando-o
corretamente
com o
agá
inicial. É o
primo Gildo,
enxuto e
disposto
nos
seus setenta e
tantos
anos.
Presidente do Rotary,
sócio
titular, de
freqüência
diária, do
respeitável e
produtivo
Centro Cultural
Batista Folharini (que
seria Fogliarini, se observada
bem a
origem).
O
pai César e a
mãe
Albina,
antes de se estabelecerem na
enorme
casa do Buracão,
lá no finzinho da José Teodoro, moraram na
Silva
Jardim.
Perto deles,
outra
casa,
alegre,
cheia de
crianças,
vozes e
cantos.
Albina,
sempre
que podia, aproximava-se daquela
casa e ficava ouvindo aquelas
pessoas expansivas, de
bem
com a
vida,
que cantavam e riam
com
sincero
prazer.
Um
menino da
casa achegou-se,
certo
dia, a Albina e
começou a
conversar.
Albina
lhe perguntou o
nome e obteve a
resposta: Pedro. Pedro Rondinelli,
que
muito
depois se
casaria
com Carolina,
filha de César e
Albina,
com
ela gerando
sete filhas
com Z
nos
nomes
ou
nos
apelidos. Sobrevivem Zeli, Zulmar, Zizinha. E
tiveram
também
dois
filhos,
Zé Maria,
que morreu de
repente há
alguns
anos, e Pedrinho.
Este o Pedro Rondinelli
Filho, dos
tratores e
máquinas
agrícolas.
Um
dia, a
pequena Luísa, de
apelido Zinoca (rememoradora destas
histórias, nas possibilidades de
seus noventa e
seis
anos), foi
levar a uma
família
vizinha,
lá no Buracão, a
oferta de todas as
vezes
que o
pai César matava
capados:
um
pouco de
carne
ou
um
tanto das
costelas,
ou
um
cambito
que fosse. Bateu uma, duas
vezes
sem
ser atendida,
mas ouviu
gemidos
dentro da
casa. Encheu-se de
coragem e entrou,
até
encontrar uma
mulher deitada no
chão e pedindo
ansiosamente
por
socorro: “Chame
sua
mãe, chame
sua
mãe, por
favor”. A
pequena Zinoca saiu
em
disparada e
logo trouxe a
mãe
Albina,
que chegou a
tempo de
ajudar a
mulher
que gemia, a
ter
um
filho,
ali
mesmo no
chão. O
menino nascido
assim foi chamado Benedito,
depois
criado
por
família
rica, tendo estudado
fora daqui e voltado
para
ser o
negro
que
primeiro na
cidade ganhou
prestígio
social,
por
ser
inteligente,
culto,
saber
sapatear e
cantar
em
inglês.
Bom Prof. Benedito de Andrade, enterrado na
rua de
entrada do
cemitério, à
direita, no
belo
jazigo de
seus
parentes
adotivos.
Aquele
jazigo
com a
foto de um
homem de
chapéu
que parece
acompanhar
com os
olhos
todos os
passantes. Benedito de Andrade,
primeiro
locutor da
Rádio Difusora,
meu
mestre de
Espanhol,
companheiro de euclidianismo. Morrendo
em Piracicaba, quis
ser enterrado
aqui,
depois de
doar as
córneas. Teve
rápido
velório na
Casa Euclidiana. Está
muito
apagada,
mas no
seu
jazigo há uma
inscrição
autobiográfica: “Aqui
jaz
um
homem
feliz. Amou
tudo e a
todos”...
César Bertocco
recebeu
carta
anônima alertando-o de
que
um
filho andava perdido de
amores,
tinha
até uma amigada,
como à
época se classificavam as
protagonistas de
casos
mais
ou
menos
duradouros. Ao
final da
refeição
silenciosa, a
família
toda
presente,
meu
avô mostrou a
carta e perguntou ao rapazinho acusado se
aquilo
era
verdade.
Muito
vermelho e
surpreso
com a
inquirição
tão
direta, disse
que
não. Passou a
não
ser, dali
em
diante,
porque
todos conheciam a brabeza do
velho (que
não devia
ser
nada
velho na
ocasião).
Os fregueses de
César Bertocco no
armazém de
secos e
molhados na José Teodoro eram
quase
todos da
roça. Vinham poucas
vezes à
cidade, encostavam
por
ali
suas
charretes,
seus
troles,
suas
carroças e faziam
grandes
compras, pagáveis no
final do
ano.
Para
urinar, havia
um
lugar
meio escondido,
sempre
úmido e cheirando a
amoníaco. E
para outras
aperturas?
Um problemão.
Então
meu
avô César mandou
fazer no
quintal
um quartinho
próprio e nele instalou
água
corrente,
caixa de
descarga,
vaso
sanitário, daqueles de
louça
branca, de
fabricação inglesa,
luxuosa
novidade numa
época
em
que se usava
ir
atrás das
moitas de
bananeiras.
Um dos fregueses, maravilhado
com a
peça
tão
bonita destinada a
fim
tão
pouco
nobre,
não agüentou e reclamou: “
Seu César!
Fazer
minhas
necessidades
ali,
nunca. Uma
vasilha
tão asseada e
tão
vistosa,
que
até serve
pra
gente
tomar
sopa!”
O
pai de
minha
mãe
era
sistemático. Lembro-me dele
já
velho (quem
chegava aos cinqüenta era velhíssimo
para
nós,
crianças), de
horários
rígidos. Levantava-se
muito
cedo e deitava-se
também
cedo,
logo
depois das
nove. Ficava todas as
noites esperando a freguesa
certa do
horário: ela
trazia uma
garrafa
que
meu
avô enchia
com
cachaça
tirada de uma
quartola. Cumprida a
última
tarefa do
dia,
ele dava
número
certo de
voltas à
corda do
relógio de
ouro guardado num bolsinho do
colete e recolhia-se ao
quarto.
Não vendeu
pinga
até o
fim da
vida,
mas
até
morrer
octogenário, trinta
anos
depois da
mulher, dava
número
certo de
voltas à
corda do
mesmo
relógio e recolhia-se ao
mesmo
quarto,
lá pelas
nove.
O
avô César e a avó
Albina,
criados
todos os
muitos
filhos,
sete
mulheres e
quatro homens--
hoje estão
vivos
só
minha
mãe e o
caçula Marcelo (94) --, fizeram a
viagem de
passeio à Itália. Foram a
suas
pequenas
cidades,
bem ao
norte, no Vêneto.
Minha
mãe
me contou
com renovada
emoção o
que há oitenta e
cinco
anos
lhe passou a
mãe dela,
principalmente o
prazer de
chegar à
casa de
conhecidos de outras
eras e
gozar a
surpresa
geral causada
pela
inesperada
visita do
casal
vitorioso no
fazer a América,
como se dizia. Devo
ter, perdidos num
lugar
qualquer de
minha
biblioteca, os
álbuns de
postais
fotográficos,
tão
nítidos, trazidos
pelos
meus avós: Ricordo di Genova, Ricordo di
Venezia, Ricordo di Padova...
Minha avó
Albina,
que
não conheci, morreu há setenta e
cinco
anos,
quase. Deve
ter sido
mulher
muito
viva,
inteligente, de
personalidade.
Até
hoje, é
raro o
dia
em
que
minha
mãe
não fale dela, de
suas
lições de
sabedoria, de
seus
provérbios e
frases
feitas. Deixou
marcas. Muitas
marcas.
02/04/2005
(emelauria@uol.com.br)
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