Em busca do ouro


O centrinho da cidade

 

Para o rapazinho de seus dezoito anos, um encanto de São Paulo (não o único, descobriria logo) era o cinema, a fartura de cinemas. Isso antes da vitória maciça da televisão, que subverteu costumes e fechou um mundo de salas. Hoje, pode-se dizer que o cinema já não exerce sua antiga função social e educativa, quando influía poderosamente na formação cultural das pessoas.

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Então, aproveitar São Paulo era, principalmente durante o dia,  sair de uma sala e entrar noutra, era enfrentar todos os lançamentos que só chegariam à sua cidade um ano depois, ou mais. Isso se chegassem, porque os filmes franceses nunca passavam no Cine Pavilhão Quinze de Novembro ou no Cine-Teatro Colombo. Filme italiano também era raro. Inglês, nem se fala. O pessoalzinho da terra se contentava mesmo era com fita de mocinho e de bandido, com romance de final feliz.

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No alto da Avenida São João, o Metro, imenso, com sua decoração  marajoara ou asteca, sabe-se lá.  Mais para baixo, o Broadway, o Ritz; escondido num canto do Largo Paiçandu, o Bandeirantes. Na Avenida Ipiranga, o próprio Ipiranga, o Marabá. Na rua de baixo, a Conselheiro Crispiniano, o mais luxuoso de todos, o Marrocos, que exigia paletó e gravata do respeitável público masculino. E tantos outros que acabaram sucumbindo: Ópera, Paratodos, Santa Helena, Art Palácio.

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 Isso sem se falar naqueles de alguns bairros, que conhecia bem. Com o primo que anos depois teria morte trágica (suicídio por enforcamento) foi ao Cruzeiro, ao Paulistano e ao Fênix, na Vila Mariana. Com o mesmo primo andou muito a pé por São Paulo em longas excursões, como a da Praça da Árvore à Praça João Mendes, varando a Vergueiro, a Domingos de Morais, a Liberdade. Quase dez quilômetros vencidos sem cansaço, à base de pura conversa.

Com outros parentes, conheceu na Avenida Rangel Pestana o Piratininga (tido como o maior do Brasil, com quase dois mil lugares); mais ao longe, o Roxy e o Brás Politeama, na Celso Garcia, com a notável particularidade de seu teto  que se abria parcialmente quando fazia calor e tempo firme... Sabia localizar até o Oberdan, onde num domingo de 1938, falso alarme de incêndio provocou a morte de trinta crianças, pisoteadas, esmagadas.

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Dias antes das suspiradas e rápidas viagens de começo e meio de ano, ele já assinalava na seção adequada do Diário de S. Paulo os filmes que o interessavam e ia arquitetando a melhor  maneira de ver o maior número deles, nem que para isso precisasse enfrentar três numa só tarde/noite.

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Entre os mais esperados das férias daquele remotíssimo  julho estava Em busca do ouro, à frente o feioso mas resoluto Wallace Beery.

Grande decepção. Em busca do ouro de um dia para outro saiu de cartaz em cinema do centro.

Se ele quisesse mesmo assistir, o jeito era se aventurar a ir até o Largo São José do Belém e lá enfrentar o Cine São José, disseram-lhe que um velho e pulguento teatro de outras eras.

No sábado à tarde havia um horário que cabia bem: das quatro às seis.

Tomou o bonde Belém no Largo de São Bento e foi em busca do ouro.

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Chegou cedo, cedíssimo. Escolheu o lugar que quis, não gostou, mudou. Estava já na terceira ou quarta opção entre tantas cadeiras vazias, quando viu com surpresa sentar-se a seu lado uma bela menina, de seus dezesseis ou dezessete anos. Com um desembaraço que o deixou um tanto sem jeito, a mocinha tomou a iniciativa da prosa, achegou-se, riu alto, levantou-se diversas vezes, acenou para uns e outros.

Ele estranhando  tudo aquilo, tão diferente das mocinhas e das matinês de sua cidade. Aí então se aproxima dele um sujeito corpulento, de maus bofes, que o interroga rispidamente:

- O que é que você anda querendo com essa menina?

- Eu? Nada.

- Nada mesmo?

- Nada.

- Ainda bem, porque saiba de uma coisa: ela é minha namorada e eu não vou ficar sem ela assim facilmente por causa de um estranho qualquer!!!

- Sua namorada uma ova! — interrompeu a espevitada garota. Você diz pra todo mundo que me namora, mas fica flertando (*) com umas e outras, me maltrata...

- Eu flerto porque você flerta, quer pisar em mim... Mas você sabe que o nosso caso é pra valer.

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E o rapazinho amante de cinema ali entre dois fogos, sem saber bem o que fazer.

O bate-boca entre o casal prosseguiu cada vez mais ríspido, até que o rapazinho resolveu falar:

- Escutem vocês. Eu não sou daqui, não conheço ninguém, não estou interessado em garota alguma. Vim de longe para assistir um filme.

- Mas você estava conversando com MINHA namorada, e eu não gostei nada disso.

- Calma lá! Eu conversando com ela ou ela conversando comigo e me usando contra você? Quer saber? Eu vou é embora e vocês dois se resolvam aí.

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E saiu não só do seu lugar, mas do cinema, do bairro do Belém o mais rápido que pôde.

O que lhe veio à cabeça? Um provérbio de sábia aplicação prática: Touro em terra alheia é vaca...

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Em busca do ouro, com Wallace Beery? Ficou sem ser visto. Com esse título, só um filme mudo de Charles Chaplin, de 1925, que o Telecine Cult repete de vez em quando.

 

(*) Ainda não existia o verbo paquerar.

 

02/03/2013
emelauria@uol.com.br

 

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