Com requintes de indiferença
Subindo a ladeira
- Márcio Lauria -
O ÚLTIMO DESEJO
Não é tão nova assim, mas não deixa de ser boa a história muito
difundida do italiano que, para não negar a raça, era um comilão daqueles. Tinha
preferências acentuadas por pratos dietéticos,
do tipo
macarrão à bolonhesa, pernil de porco,
polenta,
dobradinha
a qualquer moda,
acompanhados de salames, queijos, vinhos,
doces, cervejas,
licores,
refrigerantes.
Sempre que
advertido dos males causados por essas ingestões sabidamente
engordativas, que elevam às alturas as taxas
de colesterol, triglicérides e companhia bela,
saía-se com a
invariável
justificativa:
- Na
minha família
sempre se comeu e bebeu assim e ninguém
morreu disso; não serei eu que vou quebrar tradições seculares...
O
que ele
não levava em
conta é que seu pai, seu avô, seu bisavô
tinham sido homens de trabalhos pesados, que
não rejeitavam
tarefas
ingratas como
capinar,
lombar sacos,
rachar lenha,
podar árvores,
cuidar de vacas,
carneiros,
cabritos.
Além de andar
muito: o dia
inteiro se movimentavam, faziam força, suavam, queimavam, enfim,
qualquer excesso
de lipídios. (Ah,
eles
nunca souberam
sequer
da existência de
lipídios.)
Ele não:
com a economia
familiar estável,
adquiriu modernas necessidades. Lá pelos
sessenta e poucos anos
foi passando as responsabilidades dos negócios para os dois filhos e se pôs a
gozar mais
a vida. Carro, viagens, hotéis,
restaurantes. E comida, muita comida.
Aí um belo dia ele começa a
sentir-se mal, vai ao médico, que lhe prescreve um
regime daqueles, para emagrecer mais de uma
arroba em
curto prazo.
Não conseguiu realizar
a façanha,
principalmente
porque comia às
escondidas
o que lhe
ficasse à mão,
desde
a compota de
pêssegos até o pão caseiro recheado com torresmo.
E foi piorando,
piorando, até cair em coma diabético.
Aí ele sentiu meio tardiamente
a gravidade de
seu
estado. Não
tinha acesso
à geladeira,
doces
eram trancados a sete chaves, os exercícios
físicos que
ele não
fez, começaram a mostrar a
diferença.
-
Não sei, não,
minha velha,
– ele reconheceu
um
dia em
que
estava a sós
com
a mulher. Não
sei.
-
Não sabe o quê?
-
Não sei se escapo
desta...
E foi piorando,
piorando. Mal se levantava da
cama, aonde
lhe traziam uns caldinhos ralos e insossos,
umas frutas cozidas e sem paladar.
Um dia – aquele dia sem o qual esta
história não
existiria, ele,
que
passava muito
mal, sentiu um
suave
odor de coisa
gostosa que,
saindo da cozinha, chegava a seu nariz e lhe enchia a boca
de água.
Perguntou ao
filho caçula
o que é que
estavam fazendo.
- É a
mãe que
está aprontando uma fornada de pão de queijo.
Os
olhos do velho
italiano até marejaram de lágrimas:
-
Pão de queijo,
é?
-
Pão de queijo,
pai.
-
Então, filho,
vá conversar com
sua mãe
e lhe diga
que
estou com
muita
vontade de ao
menos
experimentar um
pãozinho de queijo,
tão
cheiroso...
O
filho foi, demorou-se mais do que
seria de se esperar e voltou
muito
desenxabido para junto da cama do pai.
- A
mãe disse que
não vai dar nenhum pro senhor...
-
Nem unzinho?
-
Nem um,
pai.
Ela disse que
esse pão de queijo só vai ser servido no velório.
O
DESMANCHA-PRAZERES
Será
que alguém
que me
lê hoje
se lembrará de “O comprador de fazendas”, conto
antológico do meio esquecido Monteiro
Lobato? Pois é a fazenda
em decadência
onde se passa
a enredo, que
me vem à cabeça
quando procuro imaginar
a cena da
história
(dizem que
muito
antiga, mas
verídica), acontecida longe, muito longe daqui.
É
que a casa
da fazenda,
antes
rodeada de imensos cafezais, foi o que restou à família,
depois de três
ou quatro
gerações de vida
à larga, com
festas, estroinices, prodigalidades e desperdícios. A cada
aperto
financeiro,
lá se ia um
pedaço de terra
cultivável, logo transformado em sítio de propriedade alheia.
Ao fim, só
a casa da
fazenda
mesmo, porque
até o grande
pomar acabara loteado e vendido a tantas
pessoas que
ali construíram
casas
agradáveis, tão
perto da cidade.
A
notícia de que
a filha mais
bonita do decadente fazendeiro ia ser pedida em casamento por advogado de
fama, dono de
apreciável
fortuna
resultante (diziam) de seus êxitos profissionais, a notícia
tão auspiciosa
encheu de júbilo a
família
inteira. Um
bom casamento
podia ser o começo
de grande
desafogo
financeiro:
afinal
eram seis mocinhas ou meninas que só
no matrimônio se poderiam livrar
de uma vidinha sem
graça,
sem futuro,
sem as larguezas
passadas de que
só ouviam dizer.
Deram uma
caprichada geral no
casarão, daqueles de vastos
cômodos
com assoalho de tábuas
largas, janelas amplíssimas, forros de taquara
trançada. Só
não
puderam fazer nada
num quarto – o do pai
do proprietário,
entrevado
de reumatismos,
peito
chiante de bronquite e nicotina. Respeitaram a resistência
do velho -
afinal
o doutor
advogado
nem precisava ficar
sabendo da existência daquele
homenzinho
decrépito, que
contribuíra fortemente
para
as desgraças
familiares.
E
assim, entre
receios e
sobressaltos,
entre despesas
imprevistas e até
descobertas
de objetos perdidos
aqui
e ali na
imensidão
da casa mais
que centenária,
chegou o dia do
pedido.
Dentro do
possível,
até que
tudo estava muito
bem para a cerimônia da formalização
do noivado, se o velhinho entrevado não
tivesse levado a tamanho
extremo
a sua resistência
à invasão de
privacidade.
Ele resolveu
simplesmente
morrer, pouquíssimas horas
antes da chegada
do doutor
advogado
e seu séqüito
de mãe, pai,
parentes e
padrinhos.
-
Mas que
boa peça nos
prega o papai!
Adiar a festa – impossível. Conciliar noivado e velório – nem pensar. Não tirar proveito dos gastos
feitos -
insuportável
falta de
habilidade.
Até que... De quem a solução tão simples e barata? Nunca
se apurou: transferir
imediatamente
o mirradinho corpo do falecido para uma casinha meio
escondida lá no
fundo
do quintal,
um
misto de paiol
e depósito de
ferramentas,
coisas inservíveis.
Encarregar
uns agregados para
providenciar
imediatamente
a papelada no cartório
e reunir umas poucas
pessoas
de confiança para
enterrarem sem
mais
delongas o
outrora
importante
fazendeiro, reduzido finalmente
a pessoa
importuníssima pela
hora
que resolveu passar
desta para melhor.
Chegaram as
visitas, recebidas com discretas gentilezas, próprias de gente que, mesmo na
pobreza, cultivava os bons hábitos de uma antiga vida sem apertos. Peças de
móveis antiqüíssimas, sem mais cuidados, capazes até de envergonhar a
família toda, eram aos olhos experimentados do pai do noivo elevadas à
categoria de raridades, dignas da apreciação e cobiça de exigentes
colecionadores. Elogiou-se tudo, desde as tábuas largas do assoalho
consumidas de sabão e soda, até as janelas amplas, sem venezianas, com
gretas por onde os ventos de inverno e as chuvas do ano todo entravam sem
nenhuma cerimônia. Não se esqueceu do elogio ao original forro de taquaras
trançadas, serviço artesanal.
Oficializou-se o noivado, marcou-se
a data do casamento para futuro próximo. Tudo se
realizou nos
conformes,
em ambiente
de comedida alegria e de esperançosas perspectivas.
Do avô -
ninguém mais
se lembrava, mesmo.
01/12/2007
(emelauria@uol.com.br)
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