Caindo na real

 

Logo na manhã de segunda-feira, 27, ainda sob o forte impacto de um resultado eleitoral emocionante, escrevi o artigo Lições de abismo, que pretendia mandar esta semana para o DEMOCRATA e para as redes sociais que normalmente o reproduzem.

Alguma coisa, porém, me dizia lá no fundo do pensamento que eu havia exagerado na dose de ironia. Daí a incomum providência que tomei de submetê-lo a prévio conhecimento de alguns de meus correspondentes por e-mail, todos pessoas de bom nível cultural e de larga experiência de vida.

 Transcrevo o parágrafo inicial:

 

A PÁTRIA ESTÁ SALVA

Segunda-feira,  27 de outubro, acordei com a boa sensação de que nosso amado Brasil havia se safado de um enorme perigo – o de cair em mãos de sujeitos  inábeis, que o conduziriam a ruins caminhos, que dariam as costas aos fraternos amigos venezuelanos, bolivianos, equatorianos e argentinos, e o  jogariam nos perigosos braços de americanos gananciosos e de europeus dos mais pérfidos. Felizmente predominou a soberana vontade popular e o seu indesmentido bom senso. Entusiasmado, repito  João Ubaldo Ribeiro: Viva o povo brasileiro!

 

A reação não se fez esperar. Recebi em menos de duas horas cerca de quinze respostas, algumas delas me acusando de ter virado a casaca, de ter votado na Dilma, depois de em toda a campanha ter dado claros sinais de ser eleitor do Aécio. Houve quem só tivesse evitado o palavrão declarado, mas me disse o diabo. Leitora de fino trato me perguntou se eu estava bem de saúde... Outras tantas como que desconversaram, tão surpresas ficaram com meu jeito maneiroso de encarar os fatos, de justificar tudo o que a oposição considerou lesivo ao Brasil. Poucas, muito poucas entenderam meu objetivo que foi escrever com ironia, um recurso de linguagem pelo qual as palavras querem  dizer o diferente, quando não o contrário, daquilo que se pôs no papel. Dois leitores, afeitos tanto a ler quanto a escrever, gostaram da brincadeira e até garantiram que alguns fanáticos dilmistas leriam meu escrito e sairiam dele com a plena certeza de que eu havia aderido às teses da presidenta. A leitora sempre atilada chegou a descobrir de quem eu havia tomado por empréstimo o título da estranha matéria: a Gustavo Corção, esquecido e mal-humorado escritor do século passado.

*

A certa altura, estão dois parágrafos que não devem ter sido considerados modelos de clareza:

 

VITÓRIA DO COLETIVO

Homens e mulheres  de todos os quadrantes deste imenso Brasil  contribuíram para que as rédeas  da governabilidade continuassem  em boas e honradas  mãos, mas não há dúvida de que mineiros, fluminenses, baianos,  sergipanos, alagoanos, pernambucanos paraibanos, potiguares, cearenses, piauienses, maranhenses, tocantinenses, paraenses, mato-grossenses, amapaenses e amazonenses precisam ser destacados nesta luta ingente, porque foram eles que acabaram com a empáfia de paulistas, gaúchos, catarinenses, paranaenses, capixabas,  sul-mato-grossenses, brasilienses, goianos,   acrianos e rondonienses.

 

DOIS DESTAQUES

Com certeza, cabe ao bravo povo mineiro a glória de acabar com certos mitos de competência administrativa e de prestígio eleitoral. Bom governador? Noventa e não sei quantos por cento de aprovação popular? Uma ova. Boa é a presidenta, isto sim. Quem bancou o bobo nesta história toda foram os paulistas, que comeram gato por lebre. Ao invés de se informarem com quem poderia explicar a realidade das coisas  com verdade e isenção – o povo de Minas Gerais – , sessenta e quatro entre cem eleitores do mais rico estado brasileiro se deixaram enganar por falsas promessas, pela demagogia barata,  por jogadas de marqueteiros. Bem feito! Como diziam os antigos, só quem não te conhece é que te compra, plaboyzinho de uma figa!

 

Outra preciosa lição vem de Pernambuco. Provando que ninguém é dono do voto de ninguém, os  corajosos conterrâneos do finado Eduardo Campos escolheram quem bem eles quiseram, no caso felizmente a nossa presidenta. No primeiro turno,  quarenta e oito por cento dos votos de lá foram para a tal Marina, que no segundo turno se aliou equivocada ao tal Aécio, embora não houvesse a mínima afinidade entre os dois. Ficou mais que provado que  voto é livre, livríssimo neste país.

*

Mas o que entornou de vez o caldo foi a parte final de meu texto, assim redigido:

 

EU JÁ ME DECIDI

Fiquei espantado com a dificuldade sentida por muitas pessoas  para chegarem  aos locais de votação. Votei no “Euclides da Cunha”, meu lugar de trabalho durante décadas. No entanto, na flor dos quase oitenta e três anos, achei custoso vencer tantas escadas, sem dar duas ou três paradinhas. Escada, rampa e escada da rua para o saguão. Longa escada para alcançar o segundo pavimento. Vi uma senhora perto dos noventa anos  quase desfalecendo numa cadeira. Vi um senhor sendo praticamente rebocado pelo solícito filho. E então já tomei uma decisão: daqui a quatro anos, se vivo e são eu for e se conseguir galgar tanto obstáculo, irei até a 18.ª seção, ainda que com auxílio alheio, para cravar meu voto no Lula.

E viva Dilma! E vivam as repúblicas bolivarianas, o esperançoso bloco de países latino-americanos em que o Brasil ingressou oficialmente no domingo passado.

*

É isso aí. O mundo de hoje não está para floreios e subentendidos. A linguagem atual deve seguir os belos padrões de concisão e clareza dos tuiteiros. Caí na real.

 

01/11/2014
emelauria@uol.com.br

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