Das miúdas providências
Dois ou três dos meus esforçados leitores me enviam uma espécie de crítica indireta porque nada tenho falado de política, de políticos, de eleições, de perspectivas futuras, de coisas do gênero. Alguém já disse com muita propriedade que o maior mérito de se cumprir à risca o calendário eleitoral é que essa prática essencial da democracia faz renascer a chama da esperança no futuro. Bem pensado. Quando, a não ser nas campanhas eleitorais, candidatos a cargos eletivos se debruçam sobre os problemas que afligem o município, o estado, o País como um todo? É desse debruçar que vão sendo dados à luz os programas de governo, as promessas viáveis ou não, o entendimento mais ou menos acurado das carências e das aspirações das comunidades. Gostei de uma história meio longa que corre por aí e que fala das dúvidas de um senador recém-falecido entre optar pelo céu ou pelo inferno como sua definitiva morada, como se isso fosse mera decisão humana. Um anjo foi encarregado por quem de direito de mostrar ao ilustre pai da pátria as belezas e as sublimidades do céu. O senador foi levado a sentir a paz e a tranqüilidade reinantes. Viu homens e mulheres tangendo cítaras em nuvens róseas; entendeu a beatitude das almas felizes, libertas da carga terrível dos corpos que fazem da vida terrena um vale de lágrimas. Não quis, porém, o experimentado homem público fazer sua opção definitiva sem antes exercer o direito de saber como era o inferno. Tendo por cicerone um diabo muito amável, desceu às profundezas e ficou agradavelmente surpreendido com o que lhe foi dado ver. Primeiro, quase todos os seus parentes, amigos e colegas estavam por lá e o receberam com júbilo, levando-o a festas mil, a coquetéis infindáveis, a finos restaurantes, a casas de diversão, a espetáculos deslumbrantes de luzes, cores e, naturalmente, calor. À vista da beatitude meio repetitiva do céu e da movimentação frenética do inferno, o ilustre homem público cravou a segunda alternativa. Deram-lhe, então, magníficos aposentos, onde passou inesquecível noitada. Que coisa maravilhosa o inferno! Na manhã mal despontada, ele pulou da cama, ávido por aproveitar desde logo as muitas delícias disponíveis nos domínios de Mefisto. Triste decepção. Tudo estava mudado. Nada de esfuziante alegria, nada de ver os colegas se esbaldando em infindas delícias. Só tristeza, escuridão, fealdades, lamentações. Não teve dúvida. Revestido da ainda restante autoridade de representante do povo, apresentou queixa formal a seu cicerone, agora não mais amável nem atencioso. Todas as suas ponderações foram ouvidas em silêncio, até que o capetinha lhe explicou em poucas palavras: - Meu caro, você foi político, sabe como é. Ontem o tratamos como os candidatos tratam os eleitores. Hoje não. Hoje você já votou... Por favor, você que me lê, não se ponha a tirar conclusões precipitadas. Nem todas as promessas eleitorais são vãs, nem todos os vitoriosos agem/agiram/agirão de má-fé, nem todos os programas depois do pleito se tornam papelório sem nenhum sentido. É que, como resumiu Petrarca, o grande sonetista italiano, num verso simples que até Camões transcreveu em Os Lusíadas, canto IX, estança 73: Tra la spiga e la man qual muro è messo... Entre a espiga e a mão meteu-se como um muro... Não é difícil entender-se a simbologia da frase que se transformou com o tempo em provérbio: imprevista dificuldade surge quando está prestes a realizar-se o que se pretende e o que se espera. A mão do administrador está próxima da espiga – suas realizações. De repente, não mais que de repente, interpõe-se inesperado entre elas o muro, a vedação, a impossibilidade. Ora, dirão, sempre houve o tal muro de problemática escalada, mas sempre é possível pensar em contorná-lo ou mesmo fazer um buraco para apertadas passagens. Acontece, imagino eu, que nunca na história deste país (reconhecem a autoria desta frase?) terá ocorrido tamanha diferença de situações vividas no clima da campanha eleitoral e na realidade da posse dos novos eleitos. Na campanha, falava-se de um país de moeda forte, de reservas substanciosas, de comércio florescente, de planos audaciosos em todos os setores da atividade pública e particular. De hora para outra, as bolsas caem, projetos se derretem, a credibilidade bancária vira escombros, há ameaça de recessão mundial. Não sobrará nenhum lugar no planeta em que não se venha a sentir a violenta mudança dos ventos. Queira Deus que nada disso que aqui resumo chegue realmente a acontecer. O que mais quero é que todos os níveis de governo disponham de recursos para levarem avante aquilo que prometeram, aquilo com que se comprometeram. Penso, contudo, que os próximos administradores e legisladores precisarão praticar diuturnamente o exercício da humildade. Sem dinheiro para implantar em larga escala o essencial serviço de tratamento de água e de esgotos, sem o qual o IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) não sobe nem um pouquinho? Sem meios para asfaltar bairros inteiros? Sem ter como tocar o esperançoso projeto de substancial melhoria na saúde, na educação, no emprego, no bem-estar? Falhou o prometido empréstimo estadual? Deu em nada o alardeado recurso federal? Aprendam o valor das miúdas providências que as populações merecem, mesmo quando verbas não conseguirem transformar-se em dinheiro. Em que se basearão essas miúdas providências? Essencialmente no respeito às pessoas de todas as idades e de todas as condições sociais, no combate a todas as formas de corrupção, no desmantelamento de todos os nichos do clientelismo e do fisiologismo. Aí eu pergunto, baseando-me no que vejo e ouço: Você está contente com o aspecto das coisas públicas que vê? Seus direitos de pedestre estão sendo respeitados pelos motoristas, pelos responsáveis pela conservação das calçadas, pelos que constroem ou reformam? As ruas e praças estão limpas, sem obstáculos ou armadilhas para pessoas de mais idade? Você tem coragem de sentar-se à noite num banco da praça central? Os limites de poluição sonora e visual são observados, mesmo aos sábados de manhã? Sua rua tem água sempre? A iluminação pública é levada a sério? O cidadão comum tem onde praticar o seu lazer? Questões de educação e cultura são consideradas prioridades? Muito provavelmente a maioria de suas respostas serão negativas em qualquer cidade brasileira. No entanto, tudo aqui referido tem previsão nas leis, nos códigos, nas posturas. Experimente, no entanto, andar por aí na simples condição de pedestre. Cuidado com a calçada esburacada! Tome tento com o galho de árvore que pode arranhar-lhe o rosto. Defronte à casa em reforma o tapume avança demasiado pelo passeio, só lhe dando uns vinte centímetros para você passar? Além do mais, uma caçamba lhe torna impossível caminhar nessa nesga de passeio, jogando-o para o meio da rua, sujeito à indelicadeza e afoiteza de motoristas? Como se vê, tanto aos prefeitos quanto aos vereadores não faltarão oportunidades de tornar a vida de todos os cidadãos mais segura, mais proveitosa. Se o prefeito de sua cidade conseguir realizar o orçamento, ante a ameaça de calote público generalizado; se o funcionalismo não se sentir lesado com a miséria dos vencimentos, se as pequenas questões de conforto, respeito, segurança, atenção para com todos forem satisfatoriamente resolvidas, já estará muito bom. Afinal, prefeito tem de se preocupar com essas insignificâncias que fazem toda a diferença no dia-a-dia de milhares de munícipes. Administrar pequenas cidades tem muito de serviço doméstico: só aparece quando não é feito ou feito mal. Vereadores têm de ficar de olho no bueiro entupido, na lâmpada queimada, no cano vazando, na briga de vizinhos, na creche sem leite, na escola sem merenda, no ônibus escolar sem segurança. Não será demasiado lembrar que o cumprimento dessas pequenas obrigações é que torna justificável a função de verear e produtiva a vida de pequenas comunidades. Questões de alta indagação têm outros foros de discussão. Nada de apresentar na Câmara Municipal projetos de concessão de títulos e mais títulos a gente que ninguém conhece ou moção de solidariedade aos povos oprimidos da África Central. O pretor não cuida de coisas pequenas? O bom administrador cuida de tudo, mesmo porque o que diga respeito a pessoas deve interessar a quem foi escolhido pela maioria dessas mesmas pessoas, através do democrático exercício do voto.
01/11/2008
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