Cada um na sua

  
Mosteiro de São Bernardo

 

O velho conhecido entrou e saiu apressado, sobraçando o jornal  sensacionalista que certamente nem lerá. Antes, ele chegava e ficava um pouco, comentava, ouvia,  brincava. Agora parece que já não tem mais assunto, que está ligado ao piloto automático.  Ele sai e  pergunto se alguém explica tanta falta de interesse pelas coisas. Esteve ali de corpo presente, mas seu cérebro perdeu boa parte das conexões, não há colorido, continuidade no que diz.

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Em compensação, outro assíduo frequentador recobrou, em curto prazo,  o entusiasmo, a alegria de viver. Até perdeu uns quilinhos. O que um amor novo pode fazer na recuperação do tempo perdido!

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Saio da reuniãozinha pensativo, porque essas pequenas desgraças ou inesperadas modificações no rumo da vida podem acontecer com qualquer um, mas quase sempre têm solução,  desde que seus atores  não tenham atingido aquela faixa de idade  em que quase nada é remediável. Sei o que é isso.

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Dou de cara, agora,  com o bem-sucedido comerciante.  E ele fala em tom filosófico e ressentido da ingratidão, especificamente da ingratidão dos filhos. Quer que eu lhe pergunte alguma coisa mais direta,   para ele poder soltar o verbo, exemplificar suas teorias, mas eu me mantenho firme. Não terá meu estímulo para falar mal de ninguém. Ele acaba fazendo isso genericamente, mas sinto que   estava à procura de ouvinte mais interessado, mais animador. Ele despede-se de mim  decepcionado com minha falta de curiosidade a respeito das maldades que  lhe andam fazendo.

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Um pouco mais acima, dou de cara com vitorioso empresário. Sei que posso lhe aplicar um conceito que o velho Machado inaugurou para a surpreendente Conceição, aquela mulher mal-amada da “Missa do galo”. “Estreito era o círculo de suas ideias”. Quase entrando no carro, topo com um antigo aluno, que já me chega reclamando: “Que coisa horrível ser fumante! Com essa lei  maluca, passamos a cidadãos de terceira classe...”

Demoro um pouco para entrar no clima do tabagismo, mas o relativamente jovem senhor me explica: “Imagine... Precisar sair da minha sala, do meu prédio e vir fumar aqui fora!” Acho  melhor não contradizê-lo, na esperança de ele mesmo se justificar. “Sei, a proibição tem seu lado positivo, é um benefício à saúde pública, mas tenha a santa paciência... Não poder fumar na minha sala, em meu prédio de escritório!!!” Só olho para ele, à espera da continuação de tanta queixa:

- Quando eu era aluno lá no “Euclides da Cunha”, aprendi a fumar por causa de vocês. Achava uma beleza professor soltando fumaça pelas ventas, até na sala de aula...

(Eu mesmo fumara em classe. Não só eu, mas Itagiba, Râmisa, Juquita, Bagodi... Fumar era um modo de autoafirmação, no mínimo. Ninguém achava que fizesse tanto mal, nem que fosse poluição anti-higiênica.)

- É... Pura verdade, mas os tempos mudaram, e neste particular para melhor...

- Isso lá é. Mas não poder fumar na minha sala...

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Entro finalmente na garagem de casa e vejo uma pessoa que toca a campainha do interfone. Lá está o filho de meu finado compadre. Faço-lhe as festas que bem merece. A conversa entre nós flui com naturalidade, mesmo porque o ainda jovem visitante é versátil nos gostos e preocupações. Imagine você que a paixão dele se chama ferroviarismo, quer dizer, tudo que se refira a estradas de ferro, mas principalmente locomotivas. As da antiga Mojiana (ele prefere a forma inicial Mogyana) são as suas favoritas. Sabe o nome delas, as características,  a velocidade máxima, a velocidade de cruzeiro, a época de fabricação. Ele me conta coisas que quase ninguém sabe. Por exemplo, que serviram por muitos anos na chamada Paulista Velha (Piraçununga, Descalvado) umas locomotivas norte-americanas apelidadas Little Joe, em lembrança de Joseph Stalin, o ditador, porque foram feitas por encomenda do governo da extinta União Soviética. Por causa do embargo imposto pelos Estados Unidos aos russos, ao tempo da guerra da Coreia, a entrega aos soviéticos foi suspensa e então a modelar Companhia Paulista de Estradas de Ferro as comprou.

Ele passa com facilidade de pato a ganso, ou melhor, de locomotiva a tango, de tango a bandas marciais, de bandas marciais a pequenas queixas quanto à dificuldade que sempre teve de se dar bem com o falecido pai, muito crítico e muito exigente.  Fala-me assim por alto de seu trabalho de recolher partituras de músicas originais entre os sobreviventes de bandas em decadência ou já extintas. Empresto-lhe o velho CD em que uma banda taurina mexicana executa com jeito de furiosa  as marchas e pasos dobles indispensáveis numa tarde de touros. Enquanto nos despedimos ao portão, meu visitante cantarola para mim um trechinho de um daqueles tangos de arrancar lágrimas e cabelos.

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Eta mundo variado! –  concluo eu, enquanto vou pensando em como acomodar tanto assunto novo para esta semana.

 

01/10/2016
emelauria@uol.com.br

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