CHUVINHA CONVIDATIVA
Convidativa a quê?
Cada um
que decida como
melhor lhe
aprouver. De minha
parte, adianto o expediente, não deixando para quarta ou quinta o que
poderei fazer nesta
terça-feira
carrancuda,
friorenta,
mesmo. Não
é o melhor
aproveitamento,
apenas o possível.
Então, na
flor dos 76 anos,
morreu Ronald Golias, o Golias que bem me lembro dos belos tempos da
TV Record, Canal 7,
em
preto e branco,
imagem rolando,
som
sumindo, saindo do ar por qualquer
relampagozinho de nada. Mas como era engraçado o Golias na
pele
de Carlos Bronco Dinossauro,
da Família
Trapo!
Não era
humor sutil,
até às
vezes meio
grosso e, nem
por isso,
desbocado. Humor
paulista, com
tiradas de
caipirismo, de italianismo. Boa
família aquela, com Otelo Zelloni e Renata Fronzi, em que Jô Soares, mordomo
um tanto
aluado, vestia
permanentemente
as sandálias da
humildade,
sem pensar no
que viria a ser,
a ponto de pleitear cadeira na Academia de Letras!
Golias era também o Pacífico, aquele
dos longos e
quase
inocentes papos
com o velho
Manuel da Nóbrega no banco da praça, que queria porque
queria unir humor,
ingenuidade e um nadinha de instrução. O filho
dele, Carlos Alberto, descambou de vez
e caiu na grossa
falta
de graça, mas
deu a Ronald Golias um
abrigo
seguro na velhice e no quase-ostracismo a que foi relegado por
tanto tempo.
Sempre que
vejo meu
conhecido
Euclides, funcionário de um clube, não resisto e ao menos
para mim
repito o velho
grito
do Golias travestido de Pacífico, ao dar seu recado final de
cada programa:
-- Ô Cride! Fala pra mãe que...
Para
meu gosto,
nem sempre
compartilhado, nada supera em caracterização
o Ronald Golias tornado velho, muito velho, boca murcha, barbicha branca,
peruca desleixada,
fala
cuidadosa, pausada, com todos os esses e
erres, e uma
lastimável
memória. Virava o Prof. Bartolomeu
Guimarães, que dormia no meio de uma história
que estava contando e a esquecia por completo, que acordava sobressaltado
de seu
cochilo
e se punha a dizer
coisas do tempo
de Prudente
de Morais, de D. Pedro II, da
Marquesa de Santos.
Bom Golias, que
antes de ser famoso, se virou como
funileiro,
alfaiate
e acrobata aquático,
um daqueles aqualoucos.
Só eu me lembro
disso tudo?
Não
acredito.
E Don Adams, o Maxwell
Smart – agente 86? Também
morreu. De idade
duvidosa,
entre 75 e 82, fez nossas delícias desde 1965 como
o atrapalhado espião
de uma agência
governamental
americana de
inteligência, o C.O.N.T.R.O.L.E., em permanente luta
contra outra
agência, a K.A.O.S. – naturalmente soviética.
Dispunha de altos
recursos
tecnológicos e
invejável
sorte. O mais
sofisticado aparelho a seu serviço, como sátira a tudo que James
Bond, o agente 007, podia ter, era um telefone sem fio embutido no
salto do sapato.
O final feliz
de cada
episódio
ficava ou
por
conta das soluções
vindas do acaso
ou da inteligência
modesta e prática de
sua
bela mulher
– uma outra
agente
que trabalhava
com
eficiência e
silêncio.
Joel Bicalho Tostes
me escreve de sua pacata cidade de Santo
Antônio de Pádua (RJ) e me manda recorte do
Jornal do Brasil com notícia que considera desabonadora para
a boa memória de Euclides da Cunha. É que o grupo paulista Teatro Oficina,
de José Celso Martinez Corrêa, está
apresentando em Berlim um longuíssimo espetáculo baseado em Os Sertões.
Pois não é que dois jornais da capital
alemã consideraram a peça, sob o título de
Guerra no
Sertão,
nada menos
que pornográfica?
Quem leu com profundidade e mais
interesse o
grande
livro sempre
achou mesmo uma
obscenidade, uma imoralidade
tudo
aquilo que
ocorreu em
Canudos,
pela desídia
do Governo, pelo
desprezo às pretensões
mínimas daquelas
populações
sertanejas de todos os modos desvalidas. Canudos
foi um crime
– em resumo
euclidiano.
Mas não é disso
que tratam os dois jornais berlinenses.
Ambos publicaram
artigos
de página
inteira
para protestar contra a presença do grupo brasileiro na capital alemã porque
a peça que
apresentavam era subsidiada com dinheiro de impostos e, no entanto,
nela participavam quarenta estudantes locais, com média de idade de
quatorze anos.
José
Celso, afeito
a todo tipo
de polêmica e de
resistência
contra sua
visão das coisas,
parece não se
abalar
e dá sua
explicação:
-- A orgia
é o fundamento
de meu teatro...
Vai
mais longe:
-- O desejo
da orgia
vive em cada
cultura e em
cada pessoa. O
teatro pode contribuir
para libertar esse desejo.
E arremata:
-- Trata-se do
ímpeto
de liberdade das
sociedades
isoladas. O tema ultrapassa o nacional e tem universalidade,
por
isso deve ser
entendido na Alemanha. Mas eu vejo isso só do ponto de vista político, econômico
ou militar.
Trata-se da libertação das origens humanas que
isolamos em
nós.
Ah, bom,
digo eu,
incrédulo
e tendo dificuldade
em
encaixar em
Os Sertões uma
cena teatral
em que
caibam quarenta alemãzinhas de seus
quatorze anos.
Joel deve estar
espumando de pura
raiva, -- ele
tão cioso
da integridade da
obra
euclidiana... Ainda
mais
que, em
uma das apresentações berlinenses, um
espectador de
quase
sessenta anos (velhíssimo, portanto, e contratado pela
produção, na opinião
de Joel), deixou-se levar pelo
ímpeto libertador
da peça, despiu-se
para
subir ao palco
e dançar com
os atores
brasileiros.
Os
dois jornais
comentam com
diferentes
enfoques o
incomum
incidente. Um
o classifica de escandaloso
e o outro de interessante,
embora qualifique a obra
de “pornoteatro” e se pergunte o que
os problemas do Brasil têm a ver
com orgias
sexuais...
Não
é nova a
idéia de vir a ciência a inventar um método rápido e eficaz
de eliminar todos os impulsos
inconvenientes,
desde
o erotismo exagerado, o exibicionismo, a gula, os delírios de imaginação,
até a agressividade.
A cada desejo
inadequado, uma injeção, uma inalação, um comprimido, e pronto.
E assim a
humanidade
seria feliz, só
sobrariam os certinhos, os permitidos, os civilizados.
O
mal é que
junto com
todos os defeitos
humanos chocantes
e causadores de
mágoas, de conflitos,
iriam pelo
ralo também
a literatura, a música,
todas as artes, as
ciências
todas, a própria
noção
do progresso
pessoal
e coletivo.
Sem
desejos, sem
impulsos por
vezes
inconvenientes, fica seca
a fonte
da emotividade, a
força
motriz da criação.
O que há de
mais
belo feito
pelo homem
tem a inevitável
presença
da transformação estética do
sofrimento, da ousadia.
Cada
homem traz dentro
de si uma
espécie
de zoológico de
desejos
primitivos. A
função
dos zoológicos,
também
conhecidos por
autocontrole,
convívio
social, é abrigar
as feras, alimentá-las e
sempre que possível não soltá-las. O segredo
é a capacidade de
não
se eliminar a fera
e seus
atributos, nem de
liberá-la de modo
irresponsável.
Difícil, não?
Ah,
Zé Celso,
tão desculpado e admirado pela tolerante bondade do Dr. Galotti!
01/10/2005
(emelauria@uol.com.br)
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