Esses perigosos segredos
Gostei de ter relido na Gazeta do Rio Pardo de dois sábados atrás uma crônica de Rodolpho Del Guerra a respeito da conversa muito franca que um filho, no dia de seu casamento, trava com o bondoso e inocente pai. O assunto é daqueles que jamais perdem a atualidade, dado o delicado viés da harmonia familiar que enfrenta. Sua republicação me abre também o feliz ensejo de tirar minha versão do limbo da prateleira. Rodolpho trata o texto com todo o cuidado e conduz a trama para um clima de geral felicidade. Eu, então colaborador da mesma Gazeta, apropriei-me do rendoso assunto, temperei-o com o grãozinho de sal da malícia e lancei no espírito do pai a semente da dúvida, ao mesmo tempo que dei à mãe uns toques de inteiro domínio da situação, à semelhança do que Capitu, a de olhos de cigana, oblíquos e dissimulados, sempre aprontava com o fracote Bentinho, o casmurro personagem machadiano . Publiquei-o em 1984, provavelmente o mesmo ano do texto de Rodolpho, e o inseri no meu livro Tempo & memória, de 1986. Aqui está ele, na versão do meu livro: Quando o jovem médico Eduardo, no dia do casamento, chega ao pai e lhe diz: “Nada mais me falta, meu pai... O senhor já me deu tudo... Para completar minha paz, eu gostaria de saber quem são meus pais verdadeiros...”, o Dr. Edgard dá um pulo da poltrona (ou sofá, não se sabe) e rebate firme: - Que história é essa, rapaz? Ficou bobo de repente?! Bebeu demais antes da hora?! - Ora, papai, o senhor se esquece que eu sou médico e conheço seu grupo sanguíneo e o de mamãe. Meu sangue é B, e eu nunca poderia ser filho do senhor, que é A, e de mamãe, que é do grupo O... - Como é isso, meu filho??? - Papai, será que o senhor, de tanto lidar com cataporas e verminoses, esqueceu toda a genética que estudou? Nada lhe ficou daquelas experiências com as moscas das frutas, as drosófilas, e com as ervilhas de Mendel? - Me lembro muito vagamente, mas isso não vem ao caso. Você é meu filho, e pronto! - Papai, contra fatos científicos não há argumentos. O senhor é A? - Sou. - Mamãe é O? - Sim. - Então. - Então o quê? - Então eu não sou seu filho. - NÃO É POSSÍVEL!!! - É possível. Provavelmente o senhor e mamãe, anos depois de uma união feliz mas improdutiva, me apanharam na roda de um hospital de Minas, sei lá. - Deixe disso, menino! Nem conheço Minas. Só Belo Horizonte, e de passagem, muito depois que você nasceu. - Então foi em Goiás: alguma irmã de um hospital perdido no cerrado, uma sorridente irmã Felícia qualquer lhe facilitou as coisas, estimulando-o a tomar para o senhor e para mamãe aquele menino de pais sadios (ela, solteira, sem condições de criá-lo; ele, uma incógnita), para que uma criança, fruto de um amor sem alicerces, fosse a alegria e a felicidade de um abençoado e bem-constituído lar. - Nunca trabalhei em Goiás. Só passei por lá de avião, rumo a Brasília. Nada disso, meu filho. Você nasceu de sua mãe, na vigência de nossa vida conjugal. Parto normal, três quilos e setecentas. (Ele sabia que era setecentos, mas achou que o momento não se prestava a gramatiquices.) A partir daí, a fisionomia dos dois se carregou e assim permaneceu durante a cerimônia no civil e no religioso. Bem que D. Selma, a mulher do Dr. Edgard, que não era boba nem nada, percebeu estranhas sombras nos olhos de Eduardo e do marido. Atribuiu-as, porém, à gravidade do momento, às tensões do primeiro filho casando, coisas assim. Arrastadamente para o pai e para o filho passaram as horas. O abraço de despedida dos dois foi mais quente que o esperável. Verdade que o jovem casal ia morar longe, começando vida nova, e o pai haveria de sentir a ausência do filho. Altas horas da noite, enquanto afrouxava o laço da gravata e se libertava daqueles malditos e bicudos sapatos de verniz, o Dr. Edgard, assim como quem não quisesse nada, perguntou à mulher ainda bonitona no seu meio século bem cuidado, entretida em se livrar da maquiagem, da peruca, dos cílios postiços e das lentes de contato: - Você sabe que num cruzamento de A com O, o produto não pode ser B? - Hem? - A e O jamais dão B. - Fale coisa com coisa, homem. Não entendi bulhufas do que você disse. O Dr. Edgard deu um longo suspiro, talvez de enfado, talvez de resignação, e soltou um “deixa pra lá”, mais para si mesmo do que para a mulher. Deitou-se depressa e apagou em seguida o abajur do seu criado-mudo. Demorou muitíssimo para conciliar o sono.
01/09/2012 |