RETALHINHOS DO COTIDIANO

 

JÁ PRA CASA!

O nome? Talvez Ernesto ou Evaristo. Um daqueles netos ou bisnetos de italianos do Norte,  loiros e reforçados.

Profissão? Um legítimo quebra-galhos, disposto a tudo,  jardinar, carpir quintais, limpar caixas d’água, acabar com formigueiros.

Quatro filhos pequenos, saudáveis e um pouco sujinhos, de nariz escorrendo e  pés no chão. A mulher, bonita, apesar do desgaste  com tanta gente e tão pouco dinheiro.

Ernesto/Evaristo não exagerava, mas também não escondia dois sentimentos bem profundos – o amor pelos filhos e o ciúme da mulher.

De vez em quando ele sumia, e quando voltava,  contava que tinha ido trabalhar em outra cidade, aqui por perto, porque topava qualquer parada, desde que não lhe faltasse serviço.

Um dia ressurgiu, depois de sumiço maior.

- E aí, rapaz... Desapareceu....  Tenho serviço pra você. Por onde andou?

- Nem queira saber. Um dia chego em casa pra almoçar e encontro panelas limpas, nenhum sinal de comida. As crianças, na creche ou na escola. Indago da vizinha mais próxima se não tinha visto minha mulher e recebo a resposta que me valeu por uma punhalada:

- Pra onde ela foi, não sei. Só sei que logo cedo apareceu por aqui um sujeito num fusquinha e ela subiu nele...

- O Sr. nem imagina os dias de cão que passei. Fiquei entre a cruz e a espada. Não tinha mesmo quem tomasse conta nem das crianças, nem de mim. Cozinhava umas coisinhas, mas dar banho nelas, cuidar da roupa, pôr certa ordem em tudo - -  isso eu não sabia direito, nem tinha o tempo necessário. Precisava buscar trabalho, afinal. Tentei levar minha mãe lá pra casa, mas ela, que não se beijava muito com minha mulher desde antes de nosso casamento, me disse que não podia, porque isso, porque aquilo,  por puro despique, na verdade. Suportei mal e mal aquela dureza por uns quinze, vinte dias. Depois me decidi e voltei a indagar da vizinhança. Será que ninguém me dava notícia de minha mulher? Percebi olhares cruzados,  vontade de falar, em umas pessoas; desejo de não se envolverem, em outras.

- Olhe, eu fiquei sabendo que o tal que veio atrás dela  montou casa lá no fim da cidade, pros lados de Paula Lima – por fim deixou escapar uma, quem sabe mais corajosa, quem sabe mais invejosa.

Não era muito, mas era uma luz. Indaga daqui e dali, acabou descobrindo a casa deles. Ficou na moita um dia de domingo, desde manhã muito cedo. Quando o tal ladrão de mulher casada saiu, horas depois,  criou coragem e foi no rumo da casa. Bateu, bateu, até que foi atendido. Veio atender ela mesma, meio espantada, meio receosa, meio desenxabida com a presença do marido. Teve  medo do que poderia acontecer ali.  Ele entrou direto no assunto:

- Olha aqui, sua maluca. Então o que você fez pras crianças, pra mim, é papel de gente?

-  Mas...

Ia, se ele deixasse, repisar  com certa  razão as velhas queixas, o cansaço da triste lida da vida... Ele atalhou, antes corajoso do que ríspido:

-  Não tem mas nem meio mas. Junta logo seus trecos e vamos pra casa, agora! Lá é que é seu lugar. Você tem muita obrigação.

 A mulher, muito ressabiada,  fez sua trouxinha, foram em silêncio pro ponto do ônibus circular.

 Já em casa,  foi  rodeada, abraçada e acarinhada pelas crianças. Beijou-as, arrumou com os dedos o cabelo da menorzinha, endireitou os suspensórios de pano de um dos meninos, fez enfim um pequeno e mudo agrado a cada qual. Na cozinha, viu a montoeira de coisas por lavar e meteu logo mãos à obra, lágrimas nos olhos.

Não se tocou no assunto de sua deserção do lar.  Ninguém pediu, ninguém deu explicações, nem se tem a menor garantia de que ela não repita o duro gesto de inconformidade com a pobreza, com a estreiteza de horizontes, com o fim dos sonhos.

 

CACHORRO BEM TRATADO

Nesta Rua Siqueira Campos, se você não abrir o olho e não fechar direitinho o portão, tem o dia inteirinho de atender gente pedindo coisas. A sorte é que a maioria não sabe falar ao interfone.

O argumento mais usado é o de inteirar.

“O Sr. não tem um real  pra inteirar minha passagem pra Itobi?” “Não pode me inteirar com dois reais o que me falta na compra de um botijão de gás?” “Dois reais para que não cortem a luz e força de minha casa?” “Cinquenta centavos que preciso para comprar  um lanchinho?”

De vez em quando, justificativas que cheiram a mentira deslavada, a pura malandragem, a desesperadas capitulações, principalmente à incontida vontade de beber. São quantias quase sempre insignificantes que inteiram  o que separa pessoas dos seus pequenos nirvanas – esses inevitáveis botecos que vendem doses de cachaça, de conhaque ordinário.

Pelo interfone, uma voz possante e pastosa já advertia previamente:

- Meu senhor, eu não bebo nem fumo, tenho  calo na mão, mas estou muito precisado de sua ajuda. Tenho de comprar ração prum cachorro que apareceu lá em casa. Tratei bem dele, acabei com carrapatos, pulgas e bernes. Ele está uma beleza e hoje eu não tenho todo o dinheiro pra ração dele, que ele é muito enjoado, deve ter fugido de casa rica e ficado uns tempos no abandono, jogado por aí, passando necessidade.

Pela voz pastosa, era difícil de acreditar em alguém tão caritativo. Mas aí me lembrei de uma falecida tia minha, abstêmia de carteirinha, que no entanto quando falava, dava a mais exata impressão de ter acabado de ingerir uns uísques  duplos, caubói.

Dias depois, a mesma voz possante  e pastosa:

- Meu senhor, quero que o Sr. venha ver como o cachorro está bonito.

Fui meio a contragosto até o portão e pude comprovar: lá estava, preso por caprichada coleira, o tal cachorro. Bonito, de fato. Pelo liso, sedoso, ar feliz, raça indefinida. O dono dele, sem o mínimo sinal de embriaguez, também parecia orgulhoso da obra de recuperação empreendida.

Só pude dar os parabéns ao cinófilo e fazer menção de querer entrar logo.

- Viu como eu estava dizendo a verdade pro Sr.?

- Pois então. Agora lhe peço o favor de me inteirar com cinco reais o preço de uma injeção que ele precisa tomar, sem falta...

 

01/08/2009

(emelauria@uol.com.br)

 

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