Enquanto os franceses não vêm

            Não antecipe julgamentos. Não falarei da Copa do Mundo, assunto exposto a uma saturação sem paralelo. Se tivesse de tratar deste tema, por enquanto muito grato a todos nós, porque vamos acumulando vitórias como a de hoje contra Gana (para mim de um sabor especialíssimo),  tomaria como inspiração e modelo o que os cronistas do jornal carioca O Globo, enviados à Alemanha, acabaram fazendo tão bem – falar de tudo em suas colunas, menos de futebol.

 Dois desses cronistas, Agamenon Mendes Pereira e Cora Rónai, fazem as delícias diárias do que eles chamam seus dezessete leitores, na verdade milhares e milhares espalhados pelo País todo. Agamenon chega a limites extremos da linguagem maliciosa e desbocada, apelando para frases de duplo ou triplo sentido, muitas delas quem sabe incompreendidas por pessoas mais ingênuas. Cora, na semana que antecedeu o início dos jogos, tratou exaustivamente de temas superimportantes, como a majestosa plantação de morangos que vicejava em terreno próximo ao hotel onde se hospedava ou os memoráveis passeios de bicicleta pelos parques, jardins e arredores da cidade. Nos últimos dias, cometeu a impropriedade (para sua idade, não revelada, mas acima dos sessenta) de galgar os mais de quinhentos degraus da catedral de Colônia, até hoje não acabada, apesar de sua longa história de mais de seiscentos anos. Cora Rónai queixa-se de dores na batata da perna , muito mais doloridas do que a contratura muscular de Ronaldinho.

Tema bom, muito reflexivo, o da recente eleição de José Mindlin para a cadeira 29 da Academia Brasileira de Letras. Confessadamente, José Mindlin, na flor de seus noventa e dois anos, não escreveu nada que justificasse sua eleição – o que não seria novidade naquela instituição que Machado de Assis e companhia bela fundaram no Rio de Janeiro no final do século XIX. Também não durará a eternidade que durou seu antecessor, o romancista maranhense Josué Montello, titular durante cinqüenta e dois anos.

 Dentro do espírito da Academia Francesa, modelo para a nossa, pertencer a seus quadros não seria privilégio de escritores e poetas. Em todos os tempos, artistas, médicos, cientistas, políticos pouco afeitos à linguagem escrita tiveram assento nela, que se tornou um centro de ebulição cultural nas suas reuniões das quintas-feiras, com chá, torradas, biscoitos e brevidades, além de licorezinhos, uisquinhos e jetom semanal de uns mil reais, porque afinal ninguém é de ferro.

 Em Paris como no Rio de Janeiro, por vezes a bajulação chegou a resultados perigosos. O marechal Pétain, herói francês da guerra de 1914 a 1918, foi eleito acadêmico por causa de seu valor como militar, mas acabou compondo-se com os invasores alemães em 1940. Libertada a França por americanos e ingleses, a Academia Francesa não teve dúvida: em 1946 expulsou de seus quadros o velho marechal, rebaixado de herói a traidor da pátria. Getúlio Vargas, quando presidente da República, foi eleito, apesar dos protestos de escritores do valor de Monteiro Lobato, para quem aquela eleição se justificava plenamente: como na Academia eram quarenta membros, Vargas representaria o zero deste número... O próprio Lobato,  o maior na literatura infanto-juvenil brasileira, nunca permitiu a própria candidatura. Também outros grandes nomes não se submeteram às exigências que deviam ser obedecidas pelos postulantes a uma cadeira, entre elas o pedido formal e pessoal do voto a cada acadêmico. Por esta e outras razões é que jamais pertenceram à ABL figuras da importância de Carlos Drummond de Andrade, Clarice Lispector, Manuel Bandeira, Vinicius de Moraes, Érico Veríssimo... Guimarães Rosa, eleito a contragosto seu, protelou o quanto pôde sua posse, porque alimentava  a idéia de que, uma vez empossado, morreria logo. De fato, não durou uma semana...

Então ficou dito que José Mindlin nada escreveu que justificasse sua eleição. Apesar disso, obteve trinta e três dos possíveis trinta e seis votos e em sua homenagem, outros candidatos à cadeira (o escritor e cartunista Ziraldo, o jornalista Villas-Bôas Corrêa  e o publicitário Mauro Salles) desistiram da disputa.

A relação de Mindlin com os livros se fez de outro modo – pela bibliofilia. Desde a mais tenra idade, interessou-se pelo livro como algo vital, insubstituível. Possui hoje a maior biblioteca do País, com cerca de quarenta e cinco mil volumes, aí incluída a mais completa Brasiliana de que se tem notícia. A notável livraria, instalada em sua casa e em acomodações especiais próprias, tornar-se-á pública após sua morte, graças a um acordo firmado por ele e por sua mulher, Gita Kauffmann Mindlin, com a Universidade de São Paulo. Os livros serão dispostos em prédio da USP e cuidados por uma fundação.

O que Mindlin não poderia sequer cogitar é que, dias após sua eleição, viesse a perder a esposa, falecida aos oitenta e nove anos, no dia 25 de junho de 2006... Viveram casados mais de sessenta anos. Gita, além de participar ativamente da vida cultural nascida em torno da biblioteca do marido, especializara-se na técnica/arte do restauro dos livros.

Tive algum contato pessoal com José Mindlin durante sua rápida visita a esta cidade, como secretário da Cultura do estado de São Paulo, isso já faz tempo à beça, mais de trinta anos. Ainda era o dono da “Metal Leve” e devia estar perdendo muito dinheiro exercendo atividade pública. Veio de avião e desceu no que se chamava com certa pompa “Aeroporto das Macaúbas”, hoje florescente bairro central da cidade. Sua companheira de vôo foi a estudiosa da obra euclidiana Walnice Nogueira Galvão, que não gostou nem um pouco do que viu por aqui, porque se vivia um estranho tempo em que se misturava Semana Euclidiana com uma feira brega, de enorme apelo popular, a FRAPIC. Ela publicou num espaço da Universidade de São Paulo longa matéria escrita com espírito crítico e humor em que relata como se misturavam assuntos euclidianos com a festa local, a festa do alho. Na verdade, ela não cita nome de cidade, mas fala das aventuras e desventuras de uma intelectual em incursão pelo interior paulista, tendo de participar de almoço no recinto da festa e submeter-se a grosseiro cardápio, tanto de comidas quanto de assuntos em discussão. Foi um artigo desmoralizante para a cidade e deve ter contribuído a seu modo para que não se repetisse em anos posteriores aquela estranha apropriação do calendário de um evento tradicional, como a Semana Euclidiana, por um festival da cebola, que acabou naturalmente definhando.

Escrevi, na “Gazeta do Rio Pardo”, longuíssimo artigo em que comento as pauladas de Walnice a um provincianismo nosso da pior qualidade. Chama-se “Errata: onde está alho, leia-se cebola”. Devo ter guardado cópia dele, mas nunca o transcrevi em nenhum de meus livros. Ele me causava inocultável mal-estar.

Felizmente para a cidade e para o euclidianismo, a finura de espírito e de trato do Dr. Oswaldo Galotti promoveu a reconciliação de Walnice com a cidade. Ele muito colaborou com ela na edição crítica de Os Sertões lançada pela Editora Ática em 1998.

Ela participou de algumas Semanas Euclidianas e muito provavelmente percebeu que o atrelamento da FRAPIC (Feira Rio-Pardense Agropecuária, Industrial e Comercial) às datas do nosso euclidianismo tinha sido um notório equívoco de breve duração.

 

01/07/2006
(emelauria@uol.com.br)

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