Chuvas e mais chuvas

 
Avenida Prefeito Antônio Pereira Dias.

 

As extemporâneas chuvas deste atípico final de maio são aberto convite a reexplorar o tema, que tem mesmo bela carga poética e um mundo de correlações.

É só entrar no Google para  ficar sabendo que lá estão armazenadas mais de dez mil e quatrocentas referências ao tema chuva na literatura mundial.

Não farei uso dessas referências nem  das múltiplas passagens em que na Bíblia se trata do assunto, concretamente como no dilúvio,  a mais abundante das chuvas, ou na alegoria da casa construída em lugar inseguro que não suportou uma  tempestade mais violenta e se esbroou toda.

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De certas leituras, costumamos sair de alma embolorada. Lembro-me bem de um romance irlandês - Cristo não nasceria na Irlanda, em que as pessoas iam com incomum frequência à igreja, porque era o único lugar da triste cidadezinha que não tinha goteiras nem umidade.

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Mas estrago mesmo fez o teatral Chuva, de Somerset Maugham, em que  as águas rolaram sobre o presunçoso pastor que se julgava imune às contingências humanas e acabou ridiculamente apaixonado por uma dessas mulheres ditas de vida fácil. Na versão de cinema, a tal mulher foi representada por nada menos que Rita Hayworth, aquela atriz que havia posto o mundo a seus pés no papel de Gilda, mulher como nunca houve igual.

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Na literatura brasileira, a chuva muitas vezes vale por redenção, por retomada da riqueza; outras, como sinal de miséria, destruição. Está em Menino de engenho, de José Lins do Rego, a movimentada página do renascimento de um rio, extinto em seca brava e prolongada. Quando caem pesadas chuvas nas cabeceiras, as águas vêm retomando seus espaços e sendo anunciadas de lugarejo em lugarejo em altos brados do mais puro júbilo: " O rio vem vindo! O rio vem vindo!".

Nós, com nossa fartura de água, nem podemos imaginar rios temporários.

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Qual euclidiano não se delicia a cada releitura de "A terra" em Os sertões, quando Euclides recria, pictórica e cinematográfica, a ressequida terra nordestina de repente ressuscitada pela água de abundantes chuvas? As primeiras delas, por causa da extrema secura da  terra e da temperatura elevada, nem chegam a tocar o solo e são prestes delidas, voltando à atmosfera em forma de vapor... " O sertão é um paraíso" é página que qualquer dos grandes escritores assinaria com orgulho.

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O esquecido poeta rio-pardense Décio Bittencourt tem um longo poema, pateticamente declamado por ele neste Brasil todo, com sua bela presença e com invejável vozeirão radiofônico. É  a respeito de inesquecível tragédia nordestina, o rompimento do enorme açude de Orós e os desastres provocados pela torrente libertada, em sua rota de estragos e mortes.

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Em francês também fica sonoro falar sobre a chuva:

Il pleut doucement sur la ville - chove docemente sobre a cidade, anuncia Arthur Rimbaud, logo rebatido por Paul Verlaine: Il pleut dans mon coeur/ comme il pleut sur la ville./ Quelle est cette langueur/ qui pénètre mon coeur? - que Onestaldo de Pennafort traduziu assim: "Chove em meu coração/ como chove lá fora. / Por que esta lassitude / me invade o coração?".  Todo tradutor tem, mesmo, um pouco de traidor, como há séculos descobriram os italianos: Traduttore, traditore.

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A maleabilidade poética da chuva depende muito do contexto e do talento do autor. Se ele for bom, como um Jorge Luis Borges, pode fazer perguntas sem respostas como em Llueve./ En qué ayer, en qué patios de Cartago/ Cae también esta lluvia? - Chove./ Em que ontem, em que pátios de Cartago / Cai também esta chuva?

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De que assunto poeticamente viável não tratou Fernando Pessoa? Relembrarei apenas sua "Chuva oblíqua": Ilumina-se a igreja por dentro da chuva deste dia, / E cada vela que se acende é mais chuva a bater na vidraça... Alegra-me ouvir a chuva  porque ela é o templo estar aceso,/ E as vidraças da igreja vistas de fora são o som da chuva ouvida por dentro...

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"Que maravilha", de Jorge Ben (quando ainda não era Benjor) e Toquinho, tem uns versos de chuva que Artur Dapieve, o sensível cronista de O Globo, classifica de românticos e sensuais paca, das mais belas canções de amor da língua portuguesa: Lá fora está chovendo / Mas assim mesmo / Eu vou correndo / Só pra ver o meu amor. (...)  E ela vem chegando de branco / Meiga, pura, linda / Com a chuva molhando / Seu corpo lindo que eu vou abraçar... E a gente no meio da rua / Do mundo, no meio da chuva / A girar...

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A música popular internacional tem poemas de muita e gentil referência à chuva:

"Você era minha chuva no dia de sol / Você era  minha nuvem no céu / É por isso que fico feliz quando chove." (Happy when it rains, de Jesus e Mary Chain)

"Nove milhões de dias chuvosos / Varreram meus olhos / Pensando em você" (alusão às chuvas eternas da Escócia) é dos mesmos autores.

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Até Lobão (que nome para um poeta!) lançou há mais de vinte anos o "Me chama" (ah, esses pronomes usados à moda brasileira não admitem substituições): "Chove lá fora / E aqui faz tanto frio / Me dá vontade de saber / Aonde está você / Me telefona/ Me chama / Me chama / Me chama". Lobão pode não entender as sutilezas do emprego de onde e aonde, mas seu apelo mexeu com muita gente, ainda mais na sentida interpretação da rouca e enigmática Marina.

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Indispensável na exemplificação do bom uso do tema chuva o "Singin' in the rain", de Nacio Herbert Brown e Arthur Freed, aquele bailado em que Gene Kelly, num filme de 1952, está genuinamente alegre enquanto contracena com um poste: "Singin' in the rain / Just singin' in the rain / What a glorious feeling / I'm  happy again / I'm laughing at the clouds/ So dark above / The sun is in my heart/  I'm ready for love". Ou seja: Cantando na chuva, apenas cantando na chuva, que sentimento glorioso. Estou feliz de novo, estou rindo das nuvens tão escuras lá em cima. O sol está em meu coração e estou pronto para o amor. 

Precisa mais para traduzir a realidade de um coração ensopado e contente?

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Ribeiro Couto, autor do delicioso romance paulista Cabocla, que a televisão adaptou mais de uma vez, entendia muito de chuva:

"Dia de chuva! Que lindo, / Que bom para a gente amar! / És a tristeza caindo, / Chuva que cais a cantar..."

"Dando graças vivi a vida inteira, / Inexplicável dom me foi o mundo, / Por mais que noutro acreditar eu queira / É neste que de chuva e sol me inundo."

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E Cecília Meireles?  "A chuva chove mansamente... como um sono / Que tranquilize, pacifique, resserene... / A chuva chove mansamente... Que abandono! / A chuva é a música de um poema de Verlaine..." (Que achado esta rima "resserene" para Verlaine, hem?)

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Fecho o assunto com João Cabral de Melo Neto, o que entendia muito de vida e morte severina:

"No Recife, se a chuva chove, / a chuva é a desculpa mais nobre / para não se ir, não se fazer, / para trancar-se no não-ser. / Mais que em cordas é chuva em sabres / que aprisiona o dia em grades; / e mesmo quem tenha gazuas / da grade viva, evita a rua".

 

01/06/2013
emelauria@uol.com.br

 

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