A ESQUECIDA DINAH

 

Quem acumulou razoável quantidade de livros, de recortes, de fotos, sabe como é inevitável: você se propõe procurar uma coisa e acaba se entretendo com outras, perdendo tempo, desviando-se facilmente do objetivo inicial.

E assim foi  que me caiu às mãos, uma tarde destas, Floradas na Serra, belo romance de Dinah Silveira de Queirós, volume integrante de uma coleção de Literatura Brasileira Contemporânea, coedição da José Olympio/Civilização Brasileira/Editora Três, 1974.

Lembro-me bem do enredo do livro, que trata dos conflitos vividos por tuberculosos internos nos sanatórios de Campos do Jordão. Não me lembrava da dedicatória da autora nem das circunstâncias em que a mereci. Mas, forçando a memória e valendo-me de alguns apontamentos encontrados depois de exaustiva procura, localizei-me em abril de 1981, quando a pedido da Gazeta do Rio Pardo, onde eu colaborava com assiduidade, lá fui eu entrevistar a escritora então no auge da popularidade por causa de sua eleição para a Academia Brasileira de Letras.

Dinah passava uns dias na Fazenda Santa Cecília, desdobramento atual da imensa Santa Lúcia, onde ela vivera férias escolares, junto com a irmã também escritora, Helena Silveira.

Na sala de estar de um casarão novo, de muito bom gosto, construído quase todo com material reaproveitado de outras demolições de fazendas, lá estava posta em sossego, muito bem cuidada e afável, Dinah Silveira de Queiroz. Num discreto mas interessado segundo plano, o marido, Dário de Castro Alves, então embaixador do Brasil em Portugal.

Ficara estabelecido com o jornal que minha tarefa seria a de pôr um grãozinho de sal na conversa, de forma a evitar que a entrevista caísse logo nas tentadoras tramas da crônica rigorosamente mundana. Para me sair menos mal, no pouco tempo que tive antes de partirmos para a fazenda, organizei uma espécie de roteiro que, por acaso, encontro agora entre as páginas de meu exemplar de Floradas na Serra,  então levado para receber o autógrafo da autora. A mensagem dela é simples e simpática, descontado o exagero de me elevar à condição de colega.

O início de nosso diálogo, que demorou muito mais do que podiam supor ou desejar os dois colunistas sociais ali presentes, foram as necessárias e inevitáveis lembranças da permanente ligação da escritora com São José do Rio Pardo. Veio à tona o episódio que envolve seu tio, Waldomiro Silveira, o excelente contista de Os Caboclos, e Euclides da Cunha, no período da reconstrução da ponte metálica do rio Pardo: Waldomiro emprestara a Euclides O Monge de Cister, de Alexandre Herculano. No encontro posterior entre os dois, Euclides teria recebido Waldomiro com estas palavras proferidas de longe: “Waldomiro, o Herculano é pesado!” Chegando mais perto do amigo, completaria e retificaria o duro conceito: “Mas tem o peso do ouro maciço...”

Depois desfilaram com nitidez e saudade as reminiscências da infância de Dinah, emergindo então a respeitável figura da tia-avó Zelinda Ribeiro. Por último, a coincidência mais recente – ela  ocupar na Academia a cadeira n.º 7, de que Euclides fora também titular.

Conseguimos vencer todas as etapas de meu roteiro, que envolvia assuntos como:

*Carlos Pedroso da Silveira, o longínquo bandeirante antepassado familiar: da realidade à ficção de A Muralha.

·        Floradas na Serra, quarenta e dois anos depois.

·        Literatura é ficção, ainda que científica?

·        Mudança de atitude em dois livros do mesmo gênero histórico: A Muralha (4.º centenário de São Paulo) e Os Invasores (4.º centenário do Rio de Janeiro).

·        Os Silveiras.

·        O ingresso na Academia: o processo de postular; incidentes; a posse.

Com maior ou menor ênfase, Dinah discorreu sobre cada um deles. Num só instante ela perdeu a postura, algo hierática: o fotógrafo lhe sacou umas fotos sem prévio aviso, quem sabe apanhando  ângulos  menos favoráveis daquele rosto bem tratado, onde o tempo perdia uns bons anos para a aparência. “Jamais faça uma coisas dessas”, ensinou ao assustado rapaz.

Meses depois, a propósito dos oitenta anos da publicação de Os Sertões, responsabilizei-me por uma vasta pesquisa intitulada “Os Sertões, hoje”. Enviei o questionário específico a Dinah, em Lisboa. A resposta não tardou e veio com o endereço da Embaixada do Brasil, Avenida das Descobertas, n.º 1.

“Os Sertões” é uma obra de valor absolutamente permanente, pela profundidade dos conhecimentos de natureza humana como geográfica, pela densidade da obra em si, pela beleza de seu estilo e pelo valor de um belo depoimento sobre um fato histórico de grande importância. Por isso, hoje ou amanhã, e estou certa de que para sempre, “Os Sertões” permanece uma obra  de  valor absoluto na literatura brasileira e, na verdade, com projeção mundial (...)

Que eu saiba, a reportagem  nunca foi publicada no jornal que a encomendou. Talvez tivessem achado muito difícil a montagem do texto a partir de uma gravação. Também não tive a boa idéia de ao menos guardar para mim a fita original, quem sabe logo superposta com a entrevista de uma notabilidade política ou futebolística local.

Anos depois, acompanhei com interesse a minissérie baseada em A Muralha, assunto que pode voltar à baila, porque a tal muralha nada mais é do que a serra do Mar, que teve de ser vencida a duras penas para se chegar à conquista do território onde se localiza a cidade de São Paulo. 2004 terá grandes festas comemorativas dos quatrocentos e cinqüenta anos da fundação de nossa metrópole. A Muralha será certamente reposta em circulação.

De qualquer modo, e para sempre, ficou gravada em mim a figura daquela mulher culta, polida, vivida, com invejável capacidade de criar tipos e armar situações, porque entendia bem as pessoas e suas circunstâncias.

 

01/05/2010
emelauria@uol.com.br)

 

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