CONFERÊNCIA OFICIAL

Semana Euclidiana 2005

 

EUCLIDES AMAZÔNICO

 

  1. Introdução. Por que eu pela segunda vezAusências muito sentidas: Adelino, Hersílio, Galotti.

  2. A difícil catalogação de Euclides da Cunha.

  3. Sua  ligação mais intensa com a Cultura do que com a Literatura. EC historiador, ensaísta, sociólogo, um scholar, enfim. Sua presença obrigatória em qualquer cânon da Cultura e da Literatura Brasileira.

  4. O ensaísta como problematizador.  As teses do ensaísmo euclidiano.  A vitória da função apelativa da linguagemUm engenheiro capaz de escrever sobre tudo, até sobre versos.

  5. Ficção, transfiguração. A força da subjetividade nos mais expressivos textos euclidianos.  A temerária opinião de Afrânio Coutinho a respeito de Os Sertões.   A função sintonizadora em seus textos.

  6. Condensação do episódio do Judas: A visão euclidiana particularíssima de um velho costume no sábado de Aleluia: a malhação do Judas. O sertanejo, internado no mais profundo da selva amazônica, constrói  um boneco  e o solta na correnteza do rio, almejando que ao menos aquela figura grotesca consiga libertar-se da escravidão insuportável e insuperável.

  7. O cabimento do adjetivo amazônico na qualificação de Euclides escritor.

  8.  A forte estruturação ficcional de “Judas-Ahsverus”. Sua aproximação com “O “Estatuário”, de Vieira. – Leitura dramática dos excertos.

  1. Página de psicologia social que sequer perdeu a atualidade. No mesmo local em que Euclides relata o drama do sertanejo atraído  pela aventura do seringal, realizando “uma tremenda anomalia: é o homem que trabalha para escravizar-se”, - ainda hoje persistem as condições do trabalho escravo, sem que as cenas dos Judas de hoje tenham quem as transforme em esculturas verbais.

  1. Os processos retóricos euclidianos: antinomia (antítese sim, mas notadamente oxímoro) e intensificação (não hipérbole, mas acumulação, superlativização). A dramatização de seus textos. Aproximações com o épico.

  2. Antiga intenção de EC: escrever sobre a Amazônia (que conheceu em 1904/1905) “o segundo livro vingador”. Do plano inconcluso, que se chamaria Um Paraíso Perdido, restou “Terra sem história – Amazônia”, incluído em  À margem da História, 1.ª edição, póstuma, em 1909, por Lello & Irmão, Porto.

  3. A impressão dominante: o homem, ali, é ainda um intruso impertinente. Chegou sem ser esperado nem queridoquando a natureza ainda estava arrumando o seu mais vasto e luxuoso salão.

  4. Do título: substantivo engendrado por Euclides, em que unidos por hífen e integrando um personagem, Judas significa a ambição e Ahsverus  (Asvero em algumas edições) lembra o condenado ao permanente caminhar. “Além disto, são palavras de Euclides, lhe é lícito  punir-se da ambição maldita que o conduz àqueles lugares para entregá-lo, maniatado e escravo, aos traficantes impunes que o iludem – e este pecado é seu próprio castigo, transmudando-lhe a vida numa interminável penitência.”

  5. O caráter reivindicatório do “Estatuário” e de “Judas-Ahsverus”: um se insere  num sermão proferido a favor dos indígenas do Brasil, contra as prepotências dos colonizadores portugueses, que lhes negavam prerrogativas de pessoas. O trabalho do estatuário é um elemento de comparação entre o que o colonizador português efetuava com os silvícolas,  e o que poderia efetuar no seu contato virtuoso com os indígenas. Outro é Euclides pondo-se a favor do seringueiro, cuja sorte deplora: “À entrada de Manaus existe a belíssima ilha de Marapatá – e essa ilha tem a função alarmante. É o mais original dos lazaretosum lazareto de almas! , dizem, o recém-vindo deixa a consciência (...), abdica as melhores qualidades nativas e fulmina-se a si próprio, a rir, com aquela ironia formidável.”

  6. Posição de Euclides em face do tema: advogado dos indefesos, como em Os Sertões.

  7. Uma tese fascinanteautobiografia moral em “Judas-Ahsverus”.

  8. Comentários.

  1. Os excertos:

 

O ESTATUÁRIO

“Arranca o estatuário uma pedra dessas montanhas, tosca, bruta, dura, informe; e, depois que desbastou o mais grosso, toma o maço e o cinzel na mão, e começa a formar um homem, primeiro membro a membro, e depois feição por feição, até a mais miúda; ondeia-lhe os cabelos, alisa-lhe a testa, rasga-lhe os olhos, afila-lhe o nariz, abre-lhe a boca, avulta-lhe as faces, torneia-lhe o pescoço, estende-lhe os braços, espalma-lhe as mãos, divide-lhe os dedos, lança-lhe os vestidos; aqui desprega, ali arruga, acolá recama; e fica um homem perfeito, e talvez um santo, que se pode pôr no altar.”

(Apud COSTA MARQUES, A Análise Literária. Coimbra, Livraria Almedina, 1968, p. 240 -241.)

 

JUDAS-AHSVERUS

“E principia, às voltas com a figura disforme: salienta-lhe e afeiçoa-lhe o nariz; reprofunda-lhe as órbitas; esbate-lhe a fronte; acentua-lhe os zigomas; e aguça-lhe o queixo, numa massagem cuidadosa e lenta; pinta-lhe as sobrancelhas, e abre-lhe com dous riscos demorados, pacientemente, os olhos, em geral tristes e cheios de um olhar misterioso; desenha-lhe a boca, sombreada de um bigode ralo, de guias decaídas aos cantos. Veste-lhe, depois, umas calças e uma camisa de algodão, ainda servíveis; calça-lhe umas botas velhas, cambadas...

Recua meia dúzia de passos. Contempla-a durante alguns minutos. Estuda-a.

Em torno a filharada, silenciosa agora, queda-se expectante, assistindo ao desdobrar da concepção, que a maravilha.

Volve ao seu homúnculo; retoca-lhe uma pálpebra; aviva um ríctus expressivo na arqueadura do lábio; sombreia-lhe um pouco mais o rosto, cavando-o; ajeita-lhe melhor a cabeça; arqueia-lhe os braços; repuxa e retifica-lhe as vestes...

(...)

E o monstro, lento e lento, num transfigurar-se insensível, vai-se tornando em homem. Pelo menos a ilusão é empolgante...

Repentinamente o bronco estatuário tem um gesto mais comovente do que o parla! Ansiosíssimo de Miguel Ângelo: arranca o próprio sombreiro; atira-o à cabeça do Judas; e os filhinhos todos recuam, num grito, vendo retratar-se na figura  desengonçada e sinistra o vulto do próprio pai.

É um doloroso triunfo. O sertanejo esculpiu o maldito à sua imagem. Vinga-se de si mesmo: pune-se, afinal, da ambição maldita que o levou àquela terra; e desafronta-se da fraqueza moral que lhe parte os ímpetos da rebeldia recalcando-o cada vez mais ao plano inferior da vida decaída onde a credulidade infantil o jungiu, escravo, à gleba empantanada dos traficantes, que o iludiram.

Isto, porém, não lhe satisfaz. A imagem material da sua desdita não deve permanecer inútil num exíguo terreira de barraca, afogada na espessura impenetrável, que furta o quadro de suas mágoas, perpetuamente anônimas, aos próprios olhos de Deus. O rio que lhe passa à porta é uma estrada para toda a terra. Que a terra toda contemple o seu infortúnio, o seu exaspero cruciante, a sua desvalia, o seu aniquilamento iníquo, exteriorizados, golpeantemente, e propalados por um estranho e mudo pregoeiro...

Embaixo, adrede construída, desde a véspera, vê-se uma jangada de quatro paus boiantes, rijamente travejados. Aguarda o viajante macabro. Condu-lo, prestes, para , arrastando-o em descida, pelo viés dos barrancos, avergoados de enxurros.

A breve trecho a figura demoníaca  apruma-se, especada, à popa da embarcação ligeira.

Faz-lhe os últimos reparos: arranja-lhe ainda uma vez as vestes; arruma-lhe às costas um saco cheio de ciscalhos e pedras: mete-lhe à cintura alguma inútil pistola enferrujada, sem fechos, ou um caxerenguengue gasto; e fazendo-lhe curiosas recomendações, ou dando-lhe os mais singulares conselhos, impele, ao cabo, a jangada fantástica para a corrente.

E Judas, feito Ahsverus, vai avançando vagarosamente para o meio do rio. Então os vizinhos mais próximos, que se adensam, curiosos, no alto das barrancas, intervêm ruidosamente, saudando com repetidas descargas de rifles, aquele bota-fora. As balas chofram a superfície líquida, erriçando-a; cravam-se na embarcação, lascando-a; atingem o tripulante espantoso; trespassam-no. Ele vacila um momento no seu pedestal flutuante, fustigado a tiros, indeciso, como a esmar um rumo, durante alguns minutos, até se reaviar no sentido geral da correnteza. E a figura desgraciosa, trágica, arrepiadoramente burlesca, com os seus gestos desmanchados, de demônio e truão, desafiando maldições e risadas, se vai na lúgubre viagem sem destino e sem fim, a descer, a descer sempre, desequilibradamente, aos rodopios, tonteando em todas as voltas, à mercê das correntezas, ‘de bubuia’ sobre as grandes águas. (...)”

(Em À margem da História, Porto, Lello & Irmão, 1909, p. 107 - 108.)

 

  1. Observações sobre o texto euclidiano:

zigomas = maçãs do rosto

guias = os pêlos de cada um dos extremos do bigode

cambadas = tortas, desgastadas de um lado

queda-se = permanece, mantém-se

expectante = que espera com ansiedade

ríctus = riso forçado

refegada = cheia de dobras

parla! = palavra  italiana, que Miguel Ângelo (Michelangelo) teria pronunciado como admiração de seu próprio trabalho ao terminar a estátua de Moisés. Teria dado uma martelada no joelho de Moisés, como que o concitando a falar

sombreiro = chapéu de abas largas

vulto = rosto, semblante

jungiu = amarrou, submeteu

exaspero = irritação

cruciante = doloroso

iníquo = injusto

adrede = previamente. Pronuncia-se adrêde

condu-lo = conduz + o. A conjugação de verbos com o pronome o enclítico tornou-se de uso raríssimo no português contemporâneo do Brasil

avergoados = cheios de vergões, marcados

especada = segura por espeques, escorada

ciscalhos = varreduras, o que se apanha do chão ao varrer

chofram = ferem

erriçando = fazendo erguer, tornando firme. A forma mais comum é eriçar

esmar = calcular, avaliar

reaviar = reconduzir, retornar

truão = palhaço

de bubuia = ao sabor da corrente, à mercê das correntezas; expressão tipicamente amazônica; por isso EC a usou entre aspas

 

  1. Conclusão.

 

13/08/2005
(emelauria@uol.com.br)

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