Revista
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Abril / 2002. Edição 114
Reportagens
Por: Pedro Cavalcanti Fotos: Reinaldo
Mandacaru
COMIDA DO SERTÃO
A
obra - prima Os Sertões, de Euclides da Cunha, completa 100
anos e continua emocionando, principalmente nas passagens em
que o desejo por alimento se transforma em obsessão de todas
as horas.
Euclides
Rodrigues Pimenta da Cunha vivia no Rio de Janeiro no início
do século passado. Engenheiro, jornalista, diplomata, escreveu
uma obra-prima, entrou para a Academia Brasileira de Letras e
talvez tenha sido brevemente feliz. Amava e não era amado, sua
vida terminou em desastre. De seu gênio, restou-nos Os
Sertões, do qual a primeira edição completa faz 100 anos do
lançamento em 2002 . Da tragédia conjugal restou uma
minissérie da Globo, com Vera Fischer no papel de Anna de
Assis. Anna foi a esposa infiel, pivô do duelo em que Euclides
da Cunha morreu varado pela bala do revólver de um tenente,
cujo nome não merece ser citado. Aconteceu num domingo, às 10
da manhã, 15 de agosto de 1909. Euclides da Cunha nascera ali
mesmo no Rio de Janeiro, 43 anos antes, e, lá, passou a maior
parte de sua vida. Era, portanto, indiscutivelmente carioca,
informação exata, mas surpreendente, visto que seu nome está
indissoluvelmente ligado ao Nordeste. Mais do que isso,
pode-se dizer que, literariamente, foi ele quem criou o
sertanejo. Isso ocorreu naquela passagem imortal que começa:
"O sertanejo é, antes de tudo, um forte". Assim, o fato de que
tenha nascido na terra do Carnaval e do pandeiro é,
francamente, um despropósito. Outro despropósito, pelo menos à
primeira vista, é dedicar um artigo à cozinha de Os Sertões,
livro que pouco toca no assunto, a não ser para destacar o
ascetismo dos seguidores de Antonio Conselheiro e as
dificuldades do Exército em cuidar dos mantimentos para o
rancho das quatro expedições contra Canudos. Mas há uma razão
para isso. Da mesma forma que a idéia de castidade está
fortemente ligada a sexo, a do jejum está associada a comida.
E assim como há pessoas que "só pensam naquilo", há passagens
de Os Sertões em que o desejo por alimento se transforma em
obsessão de todas as horas.
Em tempos normais, o
sertanejo visto por Euclides já era de uma frugalidade rara,
que lhe permitia facilmente atravessar os dias com alguns
punhados de paçoca. Em Canudos, o ascetismo tornou-se regra.
Um padre capuchinho que andou por lá pouco antes do começo da
luta resolveu pregar sobre as virtudes de um jejum sem
exageros. Tendo explicado o que ele entendia por jejum
moderado, provocou risos da platéia, que tomou aquilo pela
descrição de um banquete. Come-se, é verdade, razoavelmente
bem no sertão do Nordeste em épocas de chuva farta: são
apreciados a carne-de- sol com jerimum - que vai se tornando
obrigatória nos restaurantes finos de cozinha brasileira -, o
carneiro assado, o cabrito de panelada, o peru e o leitão de
forno, a manteiga-de-garrafa, a farinha de mandioca, o
feijão-de-corda e, sobretudo, o leite com cuscuz de milho, a
farofa de feijão, a farofa de bolão, a batata-doce e a
rapadura, a coalhada e o mugunzá com coco, que no sul passa a
se chamar canjica de milho verde.
Euclides costuma ignorar todo esse cardápio e
raríssimas vezes se refere ao prazer dos sertanejos
"desalterando-se com a umbuzada saborosíssima, ou merendando a
iguaria incomparável do jerimum com leite". Reserva todo seu
talento para a descrição do cardápio da seca, quando o
sertanejo "derruba os estípites dos ouricuris e rala-os,
amassa-os, cozinha-os, fazendo um pão sinistro, o bró, que
incha o ventre num enfarte ilusório, empanzinando o faminto".
Ou, então, quando "no auge da seca, só lhe restam, para
desalterar e sustentar os filhos, os talos tenros, os mangarás
das bromélias selvagens". Ilude-os com essas iguarias
bárbaras.
.Enviado como repórter de guerra a Canudos,
pelo jornal O Estado de S. Paulo, não era mesmo de esperar que
Euclides andasse recolhendo receitas. Aliás, no chamado duro
sertão de pedra, não apenas na região de Canudos, mas em todos
os Estados do Nordeste, o pessoal não gostava de experiências
culinárias.
De volta da guerra, Euclides mergulhou nos
milhares de páginas do manuscrito de Os Sertões. Começaram os
aborrecimentos conjugais. De 1899 a 1901, o casal viveu em São
José do Rio Pardo, onde Euclides escrevia e supervisionava a
reconstrução de uma ponte. Enquanto isso, Anna ficava à
janela. Seus amplos decotes chamaram a atenção do médico
Álvaro Ribeiro, o que ocasionou um primeiro escândalo.
Publicado Os Sertões, Euclides foi para o Acre numa missão do
Itamaraty e Anna ficou sozinha no Rio de Janeiro. Acabou se
engraçando com o tenente. Um belo dia, saiu de casa e foi
morar com ele numa casa da Estrada Real de Santa Cruz, número
214. Euclides da Cunha apanhou um revólver e dirigiu-se para
lá decidido a "matar ou morrer". Foi uma frase de novela
barata, indigna de seu gênio e, sobretudo, uma péssima idéia.
Seu rival defendeu-se. O escritor levou um tiro no peito,
morreu ali mesmo. Assim como não entendia de comida e não dava
sorte com mulheres, Euclides da Cunha atirava mal. Mas
escreveu Os Sertões, um livro genial. Ninguém é perfeito.
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