Domingo, 12 de maio de 2002 

Cidades comemoram centenário de 'Os Sertões' 

São José do Rio Pardo e São Carlos, por onde passou Euclides da Cunha, preparam eventos 

UBIRATAN BRASIL

Reprodução 

Ilustração de Euclides da Cunha, à frente do barracão onde escreveu ‘Os Sertões’ 

 

Uma ponte alemã de estrutura metálica que ligava as margens do Rio Pardo não resistiu a uma enchente e, 50 dias depois de sua inauguração, foi derrubada pelas águas do rio. Como solução, a Superintendência de Obras Públicas do Estado de São Paulo enviou para lá, naquele ano de 1898, o engenheiro civil Euclides da Cunha (1866-1909), com a responsabilidade de comandar a reconstrução. Ex-correspondente de guerra, sua conduta profissional era espartana: para acompanhar os trabalhos, mandou construir um pequeno barracão de zinco próximo da construção. E, enquanto fiscalizava a obra, ele se trancava naquele espaço para escrever à mão o que viria a se tornar um clássico da literatura brasileira, Os Sertões, cuja publicação completa cem anos em dezembro.

O barracão (um espaço miúdo com menos de cinco metros quadrados, onde se acomodavam uma pequena mesa e um banquinho) ainda está preservado e é um dos principais pontos turísticos de São José do Rio Pardo, cidade distante 266 km da Capital. A passagem de Euclides pelo município é festejada anualmente e, para marcar a comemoração do centenário do lançamento de Os Sertões, uma extensa programação foi preparada.

A Casa de Cultura Euclides da Cunha vai promover, na sexta, sábado e domingo, oficinas culturais e atividades lúdicas. Como vem fazendo há 90 anos, a instituição promove, entre 9 e 15 de agosto, a Semana Euclidiana, movimento de preservação da memória do escritor e de estudo de sua obra. Normalmente, o evento reúne mais de 500 pessoas, entre cientistas, historiadores, pesquisadores, estudantes e professores.

E ainda estão abertas as inscrições para o Concurso Euclides da Cunha 2002, que premiará, com R$ 12 mil, o melhor ensaio sobre Os Sertões. O prazo termina no dia 31 de julho e mais informações podem ser conseguidas pelo telefone (0--19) 3681-6424, pelo site www.casaeuclidiana.org.br ou pelo e-mail casaeuclidiana@casaeuclidiana.org.br

Tombado - O barracão, tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), está protegido por uma construção mais resistente e, lá dentro, Euclides consultava as anotações que fazia, em letra miúda, para as reportagens que fez para O Estado de S.Paulo sobre a resistência de Canudos contra as tropas republicanas. O texto que viria a se tornar no conteúdo de Os Sertões começou a ser rascunhado no próprio front da batalha e em Salvador, onde Euclides preparou os primeiros rascunhos, quando se preparava para voltar a São Paulo.

Em Descalvado, no interior paulista, é que ele realmente começa a escrever o livro, que será concluído em São José do Rio Pardo. Historiadores dessa cidade acreditam que 80% da obra foi escrita ali, com a ajuda do comerciante José Augusto Pimenta, que passava a limpo as tiras em que Euclides construía seu livro. O escritor era rigoroso com seu trabalho, tanto literário como na engenharia - Rodolpho José Del Guerra, um dos estudiosos de sua obra, observou que ele não deixava o local nem para almoçar e sua meticulosidade era tamanha que até os parafusos que sobraram da construção da ponte foram listados em relatório e devolvidos para a Superintendência de Obras.

A versão final do livro é revisada em Lorena, onde Euclides estava novamente a serviço, vistoriando obras públicas. Exatamente no dia 2 dezembro de 1902, a obra chegou às livrarias e o escritor ainda estava em Lorena quando recebeu a crítica favorável de José Veríssimo, iniciando uma grande repercussão - duas edições logo se esgotariam.

Além do barracão, ainda existem, em São José do Rio Pardo, a ponte construída sob a supervisão de Euclides e a casa onde morou, entre 14 de março de 1898 e 18 de maio de 1901, período em que, além da escritura de Os Sertões, também foi marcado pelo nascimento do terceiro filho do escritor, Manuel Afonso. O imóvel transformou-se na Casa de Cultura Euclides da Cunha e, apesar de tombado como Patrimônio Histórico de São Paulo, enfrentou, há alguns anos, problemas na fiação elétrica e com cupins.

O presença do autor ainda é notada em outros pontos da cidade: seus restos mortais e do filho Euclides, ambos assassinados pelo tenente Dilermando de Assis, amante de Ana, mulher do escritor, estão guardados em uma grande praça, próximo das margens do Rio Pardo.

O mausoléu foi construído em 1982 e, no centro da praça, desponta um bloco de granito rosa que sustenta a efígie de Euclides, estátua que foi doada pelo Estado, em 1918. Na lápide, foi gravado um trecho de uma carta em que o escritor confessa sua saudade do tempo em que viveu no interior, em especial do período em que morou em São José do Rio Pardo: "Que saudades de meu escritório de zinco e sarrafos da margem do Rio Pardo! Creio que se persistir nesta agitação estéril não produzirei mais nada de duradouro."

As viagens do escritor como engenheiro a serviço do governo marcaram a história de outras cidades paulistas, que transformam em monumentos os locais onde ele viveu. É o caso de São Carlos (do Pinhal até 1908), município distante 231 km da Capital. Lá, Euclides viveu um curto período, entre meados de maio e princípios de dezembro de 1901.

Em comemoração ao centenário da publicação de Os Sertões, a prefeitura da cidade instituiu a Semana Euclidiana, que vai se realizar entre 1.º e 7 de dezembro. Durante esse período, o primeiro dedicado ao trabalho do escritor, ocorrerão eventos destinados à discussão e difusão da vida e da obra do autor, e ainda as contribuições que ele trouxe para a cidade.

Conhecidos - Além das obrigações como engenheiro, Euclides tinha outros motivos para morar em São Carlos, como a presença de conhecidos - viviam lá um cunhado e amigos engenheiros, além do pai, Manoel Pimenta Rodrigues da Cunha, que morava próximo, na Fazenda Trindade, em Descalvado, na divisa com São Carlos.

O autor já havia terminado o texto de Os Sertões quando chegou a São Carlos, mas, ainda insatisfeito com o produto final, fazia correções e alterações nos originais. Contou com o auxílio de um novo amigo, Carlos de Carvalho, professor de português que o ajudava nos retoques gramaticais. Euclides também não se sentia satisfeito com suas pesquisas, permanecendo até a madrugada entretido em leituras.

À medida que fazia suas correções, o escritor inspirava-se também para escrever artigos, que eram publicados no Estado. A crônica Os Fazedores de Deserto, por exemplo, que saiu na edição de 30 de outubro de 1901, foi provavelmente escrita durante a revisão do capítulo A Terra - Como se faz um Deserto de Os Sertões. No texto publicado no jornal, Euclides trata das mudanças climáticas no interior paulista.

O escritor passou por outras cidades, quando era engenheiro a serviço do governo paulista, como Paraibuna, São José dos Campos, Cunha, Guaratinguetá, Queluz, Areias, Lorena, Ubatuba, Caçapava, etc.